Uma breve Evolução Histórica da Discricionariedade Administrativa

Uma breve Evolução Histórica da Discricionariedade Administrativa

José Pedro Teixeira, aluno 68383
trabalho mais curto, 4 páginas

         A separação orgânica entre a função administrativa, legislativa e jurisdicional é característica do Estado Moderno. Durante o Estado Absoluto([1]) era no monarca que se concentravam os poderes administrador-juiz-legislador, com total independência da lei. Nesses termos, a administração do Rei não se subordinava ao Direito, detendo de uma liberdade sem limites, a qual originou uma “máxima extensão do poder discricionário” ([2]).

É nesse contexto vigente de absolutismo que surgem as revoluções liberais americana e francesa, que se pautaram precisamente pela defesa da ideia de liberdade individual em contraposição com o poder autoritário do Rei, dando-se então início à época do Estado Liberal. Este período histórico ficou precisamente marcado pela afirmação de dois princípios que viriam contribuir para o surgimento do Direito Administrativo moderno: por um lado o princípio da separação de poderes e por outro lado o princípio da legalidade. Sendo estes dois princípios basilares no estudo da Discrionariedade Administrativa, cabe notar que o princípio da separação de poderes veio retirar o poder legislativo e o poder judicial à Coroa, conferindo o primeiro ao Parlamento e segundo aos Tribunais, o que fez com que agora os poderes que até então eram concentrados numa só figura, passassem a ser separados por várias entidades autónomas entre si. Por sua vez, o princípio da legalidade surge em revindicação do ideal liberal que resultou na defesa e proteção dos particulares, na medida em que a Administração passa a ser sujeita à lei. Aponte-se que na época do liberalismo este princípio foi visto de forma estrita, tendo como função exclusiva a garantia dos particulares, não contemplando a máxima extensão do princípio nas suas pretensões de preferência de lei e de reserva de lei que conhecemos hoje. Com a abertura da Era das Constituições escritas, era de esperar que se presenciasse a um Estado limitado pela Constituição. No entanto, se por um lado era valorizado este grande marco na história do Constitucionalismo, por outro, as experiências liberais europeias culminaram na sua desvalorização, uma vez que a “preferência de lei foi entendida exclusivamente como preferência da lei parlamentar, e não abrangia, para tais efeitos, a Constituição ([3]). Quanto à reserva de lei, esta foi entendida apenas para efeitos da salvaguarda da liberdade e propriedades do cidadão, o que permitia a administração atuar com base numa “discrionariedade livre de lei”. 

A tarefa da administração passou então a ser de meramente executória da lei e, em caso de violação, podiam os particulares recorrer aos Tribunais para fazerem valer os seus direitos. No entanto, não quis o legislador esvaziar por completo o poder discricionário da Administração já que, além de poder fazer não só o que a lei autorizava, também poderia fazer tudo aquilo que ela não proibisse ou não previsse([4]). Como poder inerente à própria Administração, a discricionariedade revelava-se um poder originário da Administração – entendimento que durou largos anos ([5]). No nosso país, Marcello Caetano espelhou esta conceção, na qual a legalidade era encarada numa perspetiva meramente formal. A Administração encontra-se dotada de um incomensurável poder, no âmbito da sua atuação, que se afirmava uma exceção à legalidade, pelo que isto resultaria na liberdade de atuação da Administração no que ao seu poder discricionário, diria respeito. 

O papel intervencionista do Estado viria afirmar-se durante a primeira metade do Século XX, após a Grande Depressão Americana e as duas grandes Guerras Mundiais. Naturalmente, aos fins públicos do Estado acrescem novas missões que vão além das então previstas, e que acrescem a promoção do bem-estar económico, social e cultural às meras necessidades de subsistência mínima e redistribuição de riqueza que eram até então asseguradas. Tais factos marcam um passo decisivo do Estado Liberal para o Estado Social, que tem sido caracterizado para a doutrina como Estado Social de Direito([6]). Ganha um novo sentido o princípio da legalidade, na medida em que a atividade administrativa passa a estar não só limitada pela lei ordinária, mas por todos os atos normativos incluindo a própria Constituição – que tinha supremacia sobre a lei na sua vertente de preferência de lei. Já no sentido da reserva de lei, esta passa a abranger todas as esferas de atuação da Administração, e acaba com este modo com a liberdade de atuar à sua margem([7]). É neste momento que a çei deixa de funcionar como limite da ação administrativa e passa a ser o seu fundamento. O primado da lei ganha especial relevo e à Administração apenas restava que o legislador lhe atribuísse através das várias previsões normativas a compet~encia no âmbito da sua discrionariedade. Este pressuposto da lei para a possibilidade de existência da discrionariedade administrativa, viria a mnater-se até aos dias de hoje([8]). Veja-se que em Portugal, com o Código Administrativo de 1986, deu-se a diminuição da esfera da discrionariedade e consequentemente um aumento da vinculação administrativa. A partir daqui, vários foram os textos normativos que vieram implementar travões à discrionariedade: desde os limites legais impostos à sua atuação, até à sua submissão ao poder jurisdicional dos tribunais administrativos.

Com o passar dos tempos, assiste-se assim a uma restrição do poder discricionário do Estado-Administração, derivado da sua gradual subordinação à lei que, cada vez mais, se demonstra exata e precisa, reduzindo a possibilidade de apreciação. Entende-se precisamente por isso que hoje, o poder discricionário não mais e um poder inerente da Administração como na época do Estado Absoluto, mas sim um poder derivado da lei.

Nesse sentido, Freitas do Amaral parece manifestar-se em notória colisão face à  já referida dogmática clássica do Professor Marcello Caetano, introduzindo, por esta via, um novo elemento de reflexão, que nos conduz ao facto de na ordem jurídica portuguesa, não existirem atos integralmente discricionários, nem tão pouco, atos totalmente vinculados.  

 

 

 



[1] Mais concretamente, Estado de polícia, é o subtipo do Estado moderno entre meados do século XVII e fim do século XVIII;

[2] Conforme diz Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, pp. 59. Note-se que há quem entenda que durante o Estado Absoluto não havia verdadeiro poder discrionário, mas antes um poder arbitrário exercido à margem da lei, como é o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Volume I, Lisboa, 1995, p.124;

[3] Conforme notam Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, em Direito Administrativo Geral, pp. 105-105;

[4] Ou seja, a vinculação à lei prendia-se apenas no princípio da preferência de lei.

[5] José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, pp.127;

[6] Conforme: Diogo Freitas do Amaral, Cuso de Direiro Administrativo, Volume I, pp. 72-73; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional – Estado e outros sistemas constituiocnais, Tomo I, 10º edição, Coimbra Editoa, 2014, pp. 101-105, e José Melo Alexendrino, em Lições de Direito Constitucional, Volume I, pp. 101-103;

[7] Marcelo Rebelo de Sousa e And´re Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral I, pp- 108-109;

[8] Diogo freitas do amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol II, pp 91-92

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