Simulação: acórdão sobre a venda do salão "Paris em Linha" (grupo 10)
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Acórdão do Tribunal
Administrativo da Linha |
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Processo: Acórdão: |
007896/LEPL
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Secção: |
1ª
Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acórdão: |
27/05/2024 |
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Tribunal: |
Tribunal
Administrativo da Linha |
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Relatores: |
Manuel
Siqueira, Tomás Castello Branco, Vicente Marques e Ricardo Gordilho |
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Descritores: |
CONFLITO
VENDA
DE IMÓVEIS PÚBLICOS FUNDAMENTAÇÃO
DE CONTRACTOS PRINCIPIOS
GERAIS DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA EMPRESA
MUNICIPAL |
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Texto Integral |
Acordam, em
conferência, os quatro juízes do Tribunal Administrativo da Linha o seguinte texto: I- RELATÓRIO No passado dia 22 de maio às 12:00 horas, ocorreu, no Tribunal
Administrativo da Linha, a audiência sobre a ação
interposta pela Associação de Cabeleireiros da Linha - representada pelas
suas advogadas: Drª
Ana Francisca Teixeira, Drª Daniela Moita, Drª Laura Rodrigues, Drª Naomi
Miki - contra a Câmera Municipal da
Linha, representada pelas suas advogadas: Drª Francisca Seruya, Drª Catarina
Santos, Drª Beatriz Pereira e Drª Alicia Madeira. Denota-se ainda importante
referir que nesta audiência foi ainda ouvida como contrainteressada a Empresa
Municipal da Linha, representada pelas suas advogadas: Drª Ana Beatriz
Martinho, Drª Luana Gama, Drª Maria Inês Lemos, Drª Matilde Loios e Drª
Teresa Nogueira. - QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR Importa ainda referir que a presente audiência foi feita sem qualquer prova
testemunhal ou documental, uma vez que toda a matéria de facto se encontrava devidamente
estabelecida, sem que sobre ela houvesse contestação por alguma das partes. 1.
Criação de
um salão de cabeleireiro por parte da Câmera Municipal da Linha 2.
Concessão da gestão do salão de cabeleireiro
para a Empresa Municipal “Linha mais próxima” 3.
Venda do
salão de cabeleireiro e de todo o equipamento a uma entidade particular pelo
preço de mil euros, por parte da Empresa Municipal “Linha Mais Próxima” 4.
Ausência de
qualquer procedimento formal de contratação pública na venda 5.
Ocorrência
da venda no período pós pandemia 6.
O
proprietário do salão é a Câmera Municipal da Linha III. Alegações das partes A Associação de Cabeleireiros da Linha alega que: 1. Apesar de pelo artigo 4º/2, alínea c)
do Código dos Contratos Públicos, não se aplicar o regime referido, tendo em
conta o facto de as autarquias locais, as suas associações e federações de
direito integrarem a Administração Pública (art. 2º/4, alínea b do CPA),
aplicar-se-á a toda e qualquer atuação das mesmas os princípios gerais da
atividade administrativa e as disposições do CPA (art. 2º/3 CPA) 2. Quanto à ausência de Procedimento
Formal, que esta : a.
Violou o Princípio da Colaboração com os Particulares (artigo 11.º do
CPA) e o Princípio da Participação (artigo 12.º do CPA). b.
Violou regras de concorrência consagradas nos artigos 81.º, alínea f) e
99.º, alíneas a), c) e e) da CRP e do Direito da União Europeia (artigos
101.º a 113.º do TFUE) que visam garantir o funcionamento equilibrado e
eficiente da economia de mercado e a proteção dos consumidores, havendo um
favorecimento de uma empresa face aos demais concorrentes. c. Violou o princípio da igualdade,
previsto no artigo 266/2 da CRP e no artigo 6° do CPA, na medida em que,
tendo ocorrido um ajuste direto para uma empresa específica, não foi aberta a
possibilidade a outros particulares de fazerem propostas e adquirirem os bens
móveis e imóveis, tendo estes sido tratados de forma desigual. d.
Violou o principio da proporcionalidade (artigo 266/2 CRP e art.9º CPA) dado
que haveria mais custos do que benefícios nesta venda, sendo os custos o possível
desequilíbrio do mercado local, desfavorecendo e colocando em risco os
pequenos empreendedores. 3. O fundamento dado para justificar a venda é
contraditório, obscuro e pouco coerente o que viola o principio de colaboração
com os particulares (artigo 11º do CPA). 4. Se os serviços prestados pelo
cabeleireiro tão relevantes para a população, não fazia qualquer sentido vendê-lo. 5. Quanto à venda pelo preço de mil euros
esta: a.
Corresponde a uma clara
disparidade entre o valor objetivo da loja e do equipamento e o valor vendido. b.
Viola de forma evidente o Princípio da Boa Administração, presente no
artigo 5.º do CPA e o já referido principio da proporcionalidade. c.
Viola o principio da prossecução do interesse público, artigo 4.º do CPA
e artigo 266.º, n.º 1 da Constituição. 6. Tendo já terminado a pandemia aquando
a venda não se pode falar falado de um cenário de estado de necessidade para
justificar a exclusão das devidas irregularidades, não se aplicando o artigo
3/2 do CPA. 7. A venda correspondeu a um processo de
corrupção e favorecimento de um particular pelo desrespeito do já referido princípio
da imparcialidade (artigo 9º CPA) e do principio da boa fé (artigo 10º CPA) . 8. Pela violação dos princípios em cima
referidos a venda é ilegal e inconstitucional. A Empresa Municipal Linha Mais Próxima alega que: 9.
A ausência
de procedimento de contratação pública está perfeitamente justificada, uma
vez que sendo esta uma venda de imóveis o referido código não lhe é
aplicável, tendo em conta o artigo 4/2 do CCP. 10. Aplicar-se-á então ou o Regime
Jurídico do Setor Empresarial Local, nomeadamente a Lei nº50/2012 de 31 de
agosto ou o Decreto-Lei nº 280/2007, de 7 de agosto, do Regime Jurídico do
Património Imobiliário Público. 11.
Não há provas, tendo em conta a matéria de
facto, do favorecimento de uma empresa de cabeleireiros em detrimento das
demais e da consequente violação do princípio da imparcialidade (art. 9º CPA). 12.
A venda por
um preço simbólico (mil euros) foi de encontro ao principio da prossecução do
interesse público (art. 4º do CPA) dado que co, o fim da pandemia deixa de
fazer sentido que uma entidade pública forneça um serviço de cabeleireiro. 13.
A venda foi
também feita de acordo com o princípio da boa administração (art. 5º do CPA),
uma vez que esta foi deita de forma célere, eficiente e pouco dispendiosa
para as partes envolvidas. 14.
O preço
simbólico e a falta de procedimento não são suficientes para se alegue a
existência de corrupção e favorecimento de terceiros uma vez que: (i) mesmo
que houvesse concurso público o imóvel seria vendido ao mesmo particular pelo
mesmo preço e (ii) a venda não está sujeita a nenhum procedimento específico
e (iii) a empresa municipal não tem como objetivo fazer lucro. 15.
Seria
inconstitucional “castigar” o particular que comprou o salão e que já tinha constituído
o seu direito de propriedade sobre este, por um processo que está fora do seu
controlo. 16.
Por todas as
razões acima referidas a venda do referido imóvel é legal e válida. A Câmera Municipal da Linha alega que: 17.
As
autarquias locais prosseguem as suas atribuições próprias, podendo arrecadar
receitas, elaborar e executar orçamentos municipais, prestar contas e
garantir a transparência na gestão dos
recursos, como se pode ver no artigo 3º, alínea d) do RJAL. 18.
Compete,
segundo o artigo 33.º RJAL, à CML adquirir, alienar ou onerar bens imóveis de
valor até 1000 vezes a RMMG, sem a necessidade de autorização específica de
outras instâncias. Deste modo, a CML apresenta autoridade para, através da
empresa municipal, vender, doar ou transferir a propriedade do imóvel
referido. 19.
A situação
em análise necessitava de uma rápida resposta, tendo em conta as
circunstâncias imprevistas ou emergenciais da pandemia, e de acordo com o
artigo 3º/2 do CPA. 20.
Quanto à
violação do principio da imparcialidade, este não se encontra violado uma vez
que se vivia uma situação urgente que requeria esforços e uma atuação
distinta da habitual, da parte da CML, estando por isso justificada a
ausência de procedimento formal. 21.
Não foi
violado o principio da concorrência uma vez que, reconhecendo este a
liberdade de iniciativa económica privada como principal maneira de
satisfação das necessidades económicas, caso o concurso fosse aberto a várias
empresas o processo iria ser extremamente demorado e burocrático. Tal
acabaria por ir contra o interesse da população em poder aceder a um cabeleireiro
de qualidade, o que acabaria por ter repercussões negativas na sua saúde
mental durante um período de circunstâncias extraordinárias 22.
O facto de a
Câmera Municipal de Linha ter vendido
veio prosseguir o interesse público uma vez que tomou uma solução rápida e
eficaz, para chegar a um determinado fim. IV.
Matéria de direito Importará ao Tribunal, antes de tomar uma decisão sobre o caso, explicar e enumerar, ainda que de forma sumária, algumas das regras e princípios fundamentais para a resolução do presente litigio. Em primeiro lugar, importará tratar do assunto da aplicação da CCP ao contrato em questão. Efetivamente, o artigo 4.2/ alínea c) CCP) afirma que o CCP não se aplica a contratos de venda de imóveis. A razão de ser de tal exclusão é justificada pelas especificidades inerentes à aquisição e alienação do património imobiliário público. Isto justificou a criação de um diploma concreto (Decreto-lei n.º 280/2007 de 7 de agosto - Regime Jurídico do Patrimônio Imobiliário Público). Em segundo lugar denota-se ainda importante esclarecer
sobre o Estado de Necessidade Administrativo. Este surge
para permitir à Administração Pública agir de forma diferenciada do seu
normal quando se encontrar face a uma circunstância excecional e inesperada,
em que as vidas, os bens e património das pessoas estejam em perigo. Efetivamente,
nestas circunstâncias admite-se a possibilidade da Administração recorrer a
uma “legalidade excecional ou extraordinária ”. Aquando a
aplicação do Estado de Necessidade Administrativa é preciso o cumprimento dos
quatro requisitos seguintes: i) a existência de circunstâncias que sejam de facto extraordinárias; ii) que
haja uma ameaça séria ou um perigo iminente que se demonstre suscetível de
causar danos a pessoas, bens ou interesses legalmente protegidos; iii) que a
atuação administrativa seja indispensável e urgente; iv) que a preterição de certas normas pela
administração não punham em causa outros interesses superiores. Por outro lado importa ainda referir os princípios
enunciados pelas partes: 1. Principio da persecução do interesse público – artigo 4º do CPA e artigo 266/1 da CRP. Este principio aponta
que o “norte”, ou seja, o valor que a Administração Pública deve almejar
atingir nas suas ações é o interesse público. Desta forma, a AP só pode
prosseguir o interesse público estando proibida de prosseguir interesses
privados. 2. Principio da boa Administração (artigo 5º do CPA) – Este principio aparece
intimamente ligado com o principio anteriormente referido. De facto,
tendo em conta a sua previsão legal no artigo 5º do CPA, o principio da boa administração exige que
a atuação da AP seja pautada por critérios de: (i) eficiência, ou seja, de se
exigir à AP que utilize da forma mais
rentável os recursos públicos, evitando-se assim desperdícios e garantindo
que se atingem os objetivos que cabe à AP atingir sempre tendo em conta a relação entre custo e benefício; (ii) de celeridade - não
ser excessivamente morosa -; e (iii) economicidade, isto é, fazer bom uso dos dinheiros públicos, gastando-o
de uma forma ponderada e procurar-se a opção que seja tanto a mais barata
como a com a maior qualidade. 3. Principio da igualdade (artigo 6º do CPA e artigo 13 da CRP) – Este principio impõe que se
trate de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente.
Assim, proíbe-se uma diferenciação de tratamentos entre os particulares
quando esta diferenciação não seja justificada e razoável à luz do fim visado. 4. Principio da proporcionalidade (artigo 7º CPA e 276/2 CRP) – Principio que afirma que
a limitação de bens ou interesses privados por atos em que se usam os
poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais
atos prossigam, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins. 5. Principio da imparcialidade
(artigo 9º CPA) –Principio que afirma que a administração deve estar numa
posição acima das partes, tomando as suas decisões com base em critérios
próprios, não tolerando que esses critérios sejam distorcidos por interesses
alheios, sejam esses pessoais, partidários ou políticos. Ou seja, segundo a
ideia doutrinária do professor Freitas do Amaral, é o principio que impõe aos
órgãos e agentes da AP que ajam de forma isenta e equidistante quanto aos
interesses em jogo nas situações sobre as quais se devem pronunciar ou
tomar uma decisão,
Os Senhores Juízes do Tribunal Administrativo da Linha tomam assim uma decisão sobre o caso em julgamento, dividindo-se esta em quatro partes. Em primeiro lugar tratar-se-á da questão de quem tinha competência para vender. Em segundo lugar tratar-se-á da questão da fundamentação e dos motivos da venda em si. Em terceiro lugar, importará analisar a falta de procedimento de contratação pública e o facto do contrato de venda ter sido feito por ajuste direto. Por fim, importará averiguar a questão do preço simbólico pelo qual o imóvel foi vendido e as alegações de corrupção e de favorecimento de terceiros. 1.
Competência
para vender
2. Fundamentação e motivos da venda Importará inicialmente referir que o contrato de compra
e venda em questão não está sujeito ao Código dos Contratos Públicos (CCP),
nos termos do artigo 4º/2/c) deste diploma, que exclui do seu âmbito de
aplicação contratos de compra e venda de bens imóveis (como o Salão “Paris em
Linha”). Contudo, a este contrato são aplicáveis as regras e
princípios do Código do Procedimento Administrativo (CPA), nos termos do
artigo 201º/3. Assim como os princípios de natureza constitucional enquanto
limitadores da atividade administrativa, nos termos do artigo 266º da
Constituição da República Portuguesa (CRP). Efetivamente, já
não havia um estado de necessidade quanto à venda porque que nesse período já
não se verifica uma situação de urgência que justifique a invocação fundada
desse instituto (artigo 3º/2, CPA). Deste modo impõe-se a vinculação da
empresa municipal adjudicadora às regras e princípios do CPA, sem preterição
alguma, apenas com as devidas adaptações decorrentes do facto de não estar em
causa um ato administrativo mas sim um contrato público – por natureza distintos
– pois que o primeiro consubstancia uma decisão unilateral da Administração,
enquanto que o segundo, tratando de um contrato, exclui a unilateralidade. O já citado artigo 201º/3, dispõe, in fine, no sentido
das necessárias adaptações das regras e princípios do CPA aos contratos
administrativos. A criação do salão “Paris em Linha” não é objeto de
decisão desta instância, no entanto, tal não dita a irrelevância da questão
para o caso. Há de facto uma “conexão juridicamente relevante entre os dois
problemas”, nomeadamente quanto à fundamentação desta criação que será
relevante para efeitos do fundamento da venda. Apurou-se, quanto à criação, que o fundamento da mesma
foi o objetivo de “aumentar a o bem-estar, a autoestima e a alegria de viver
dos habitantes do município durante a pandemia”. Quanto ao fundamento da
venda, apurou-se a argumentação da empresa adjudicadora no sentido de
justificar a venda com a “relevância dos serviços prestados no combate aos
efeitos psicológicos da Covid-19”. Assim sendo, parece que a fundamentação é idêntica:
zelar pela saúde mental dos habitantes do município. Aliás por esta razão se
considerou que a criação estaria no âmbito das competências do município, nos
termos do artigo 23º/2/g), que estabelece competência deste no âmbito da
Saúde. Ora, quanto ao estado de necessidade, considera-se não procedente a
invocação de uma atuação administrativa nesse espectro. No entanto, nada
obsta a que haja por parte dos entes públicos o objetivo de zelar pela saúde
mental dos habitantes do município no período pós pandemia, apenas não se
considera a atuação com esse objetivo num quadro de estado de necessidade. Os advogados da Associação de cabeleireiros da Linha
argumentam contra a fundamentação dada pela empresa municipal no respeitante
à venda do salão, afirmando que “[s]e os serviços prestados pelo cabeleireiro
são tão relevantes para a população, então não faz qualquer sentido vender
esse mesmo cabeleireiro. Seria preferível a Administração Pública continuar a
proporcionar esse serviço, do que deixá-lo nas mãos de uma empresa, que ao
que tudo indica é privada, sem ter quaisquer garantias, ou pelo menos, sem partilhar
informação sobre as garantias que tem, de que esta empresa está apta a
continuar esta prestação de serviços com a mesma qualidade e benefícios que
antes eram prestados”. Entende-se esta argumentação como não procedente, pois
o que se critica é a conveniência da decisão tomada pela empresa municipal,
ou seja, uma questão de mérito que se inclui no âmbito de uma atuação
discricionária que, por natureza, é alheia a qualquer instância
jurisdicional. Assim, a decisão de vender o salão ou de continuar a
prestar aqueles serviços da forma como que considerou melhor durante a
pandemia constitui uma atuação discricionária da Administração em causa,
insuscetível de controlo judicial. Tal consideração implica, no entanto, a
fundamentação que de seguida se dará assim como as ressalvas que se farão
quanto a este propósito. A discricionariedade corresponde a uma modalidade de
margem de livre decisão administrativa que, por sua vez, se inclui no âmbito
da autonomia pública administrativa. Esta, recorrendo a Bernardo Ayala,
corresponde a um espaço de livre criação de efeitos jurídicos que resulta de
uma norma habilitadora e conformadora da titularidade e exercício do
respetivo poder. Tal entendimento corresponde a uma conformidade com o
princípio da competência (princípio fundamental decorrente do princípio da
legalidade) que implica que a Administração apenas possa fazer aquilo que lhe
é permitido por lei, devendo esta fundamentar qualquer atuação
administrativa. Entende-se, por isto, que a discricionariedade apenas se
justifica quando estabelecida, fundada e limitada pela lei. Recorre-se ainda
a Rogério Soares, definindo a discricionariedade como uma “lacuna
infralegal”, como um espaço de livre decisão que a lei define e estabelece,
procurando atingir fins não conseguidos através somente da regulamentação
legal e permitidos através da atuação administrativa. Tal não significa que
toda a ausência de predeterminação normativa resulta num espaço de livre
decisão administrativa pois que, repete-se, a autonomia administrativa reside
no facto de esta apenas poder atuar no âmbito de normas que habilitem essa
mesma atuação, em respeito pelo princípio da competência. Desta forma, a
ausência de regulamentação será apenas um espaço livre de direito ou
ajurídico, exceto se se tratar de matérias em que a lei estabelece a
competência da Administração para relativamente a elas decidir tendo como
fundamento uma norma habilitadora dessa decisão administrativa. Assim, apenas se tratará de uma atuação discricionária
se houver uma norma habilitadora para tal. Neste sentido, tal norma
habilitadora surge no artigo 23º/2/g), do Regime Jurídico das Autarquias
Locais que atribui competência aos municípios para atuar no âmbito da
“Saúde”. Entendemos que se inclui neste âmbito o desenvolvimento de
atividades que permitam combater os efeitos psicológicos da pandemia, ou
seja, a criação do salão e, por igualdade de razão, a venda do mesmo. Cumpre ainda ter em conta, na senda do Prof. Vasco
Pereira da Silva, que na realidade, todos os atos (entenda-se todas as
atuações) da Administração incluem elementos vinculados e elementos
discricionários. Considera-se, na senda desta autor, que até a própria
atividade interpretativa inclui elementos discricionários, por isso uma
qualquer atuação também é suscetível de incluir elementos de livre decisão
administrativa (discricionariedade). Este caso não é exceção, também a venda
do salão pela empresa municipal “Linha Mais Próxima”, inclui espaços de livre
decisão que são, por natureza, insuscetíveis de controlo judicial por se
tratarem de matérias de mérito, e espaços de predeterminação normativa que
vinculam a administração a um determinado comportamento e que, por isso, não
estão isentas de controlo sobre a sua legalidade. Assim, considera-se que a decisão de vender o Salão
traduz uma ponderação levada a cabo pela empresa municipal (e, neste caso, pela
Câmera Municipal da Linha) sobre a maior conveniência da prestação de
serviços por uma entidade diferente daquela a quem se atribuiu essa atividade
durante o período pandémico. No entanto o modo através do qual se realizou a
venda já não corresponderá a um espaço de livre decisão administrativa. Quando ao modo através do qual o contrato de compra e
venda foi celebrado, nomeadamente a ausência de um procedimento formal,
considera-se este tribunal plenamente apto para averiguar sobre questões de
legalidade do mesmo. Repete-se, embora o contrato de compra e venda em causa
esteja isento da aplicação do CCP, não estará fora do âmbito do CPA (nem
através da alegação do estado de necessidade, que se rejeita), do que decorre
que os princípios limitadores da atividade administrativa são aplicáveis a
este contrato. Em suma: considera-se improcedente a argumentação dos Advogados da Associação dos Cabeleireiros da Linha quanto à incoerência ou contrariedade da fundamentação da empresa municipal “Linha Mais Próxima” relativamente à decisão de vender o Salão “Paris em Linha”. Quanto à procedência dos argumentos destes quanto ao modo como foi se realizou a venda, nomeadamente quanto à venda por preço simbólico e sem procedimento formal de contratação pública tomaremos posição adiante. Ainda quanto à fundamentação dada pela empresa
municipal, considera-se que: 1) o dever de fundamentação contido no artigo
152º, CPA, se aplica ao contrato administrativo em causa, tendo em conta o
artigo 201º/3, in fine; 2) tal fundamentação não cumpre manifestamente o
dever jurídico de fundamentação. O dever de fundamentação impõe, nos termos do artigo
152º/1/a) que qualquer ato administrativo (e neste caso este contrato
administrativo) que afete direitos ou interesses legalmente protegidos dos
particulares devem ser fundamentados. Entende-se que esta fundamentação se
deve pautar por três critérios essenciais: clareza, coerência e suficiência. Os Advogados da ACL acusam o incumprimento dos
requisitos de coerência e clareza do fundamento dado pela empresa municipal.
Assim não se considera que o dever de fundamentação é violado pela ausência
de justificação - põe na prática, uma
fundamentação. mas porque a fundamentação apresentada é manifestamente
insuficiente. Dada o carácter idiossincrático desta venda, a empresa
municipal deveria ter justificado de modo mais cabal as razões da decisão de
vender o Salão por um preço simbólico e sem procedimento formal. Assim, remetendo para o regime geral das invalidades, nos termos do artigo 163º, considera-se que a consequência da fundamentação insuficiente será a da anulabilidade da venda. Não se remete para o artigo 161º/2/d), CPA, como propõe o Prof. Vasco Pereira da Silva, pois que se entende não estar em causa a violação do núcleo essencial de um direito fundamental (mais precisamente o artigo 267º, números 1 e 5, CRP) não sendo a nulidade a consequência desta fundamentação insuficiente, mas sim a anulabilidade da venda (163º, CPA). 3. Falta de procedimento na contratação pública Cabe a este
tribunal analisar também o problema que se coloca quanto à falta de
procedimento formal para a venda da empresa.
Uma vez que está excluído o estado de emergência - pelo facto da
situação em que a administração se encontra no momento da venda ser
manifestamente diferente do que aquele em que se encontrava aquando a
pandemia - não pode haver preterição das regras previstas no CPA,
aplicando-se o principio da legalidade na sua normalidade (artigo 3º CPA). Alega a
Associação de Cabeleireiros da Linha que: 1. Houve Favorecimento de uma
empresa que tinha nascido na égide do município e não está a ser respeitado o
princípio da concorrência. 2. Dever-se-ia ter recorrido a um procedimento
formal de contratação pública. A Empresa Municipal e a Câmera defendem, no
entanto , a legalidade em todo o processo de venda, estando cumpridos os
princípios a esta adjacentes. Interessa
neste momento concluir sobre o procedimento de venda a desencadear. Como já
referido em cima, a este caso não são aplicáveis as regras do Código de
Contratos Públicos mas são aplicáveis as regras e princípios do Código do
Procedimento Administrativo tal como temos presente no seu artigo 201º , nº3
, tendo a Administração Pública, neste caso a Câmera Municipal da Linha e a
Empresa Municipal “Linha Mais
Próxima”, de respeitar os princípios da transparência, da igualdade e da
concorrência como diz também o próprio artigo. Estando
igualmente previsto que as autarquias locais e as suas associações e
federações de direito público integram a Administração Pública (art. 2.º/4,
alínea b) CPA), determina-se a aplicação a toda e qualquer atuação da mesma
os princípios gerais da atividade administrativa e as disposições do
respetivo Código que concretizam preceitos constitucionais, ainda que
meramente técnica ou de gestão privada (art. 2.º/3 CPA). Como
sublinha a Prof. Maria João Estorninho, a Administração, mesmo nos contratos
administrativos, encontra-se sempre submetida à lei, isto é, a administração
vinculava-se pela lei, o que significa que não só pelas regras contratuais
que ela própria estabeleça dentro dos quadros da lei, como também pelos
princípios gerais que enxarciam a atuação administrativa, numa lógica
material desenvolvida pelo Prof. Vasco Pereira da Silva mediante o princípio
da legalidade com um conteúdo idêntico ao de juridicidade, um princípio de
natureza material, aberto, expansível, flexível no quadro da sua atuação. A
lei adota o entendimento conforme, no sentido da aplicabilidade ampla, nos
termos do art.201º, nº2 do CPA. É importante
densificar um princípio que diz
respeito à atividade administrativa e que tem uma formulação constitucional. O
Princípio da começou por ser um principio de natureza económica mas atualmente tem uma
dimensão que vai para além desta vertente puramente económica. A ideia base
são os valores da igualdade justiça e imparcialidade o que faz com que o
procedimento de concurso tenha de ser aberto, publicitado, transparente,
livre, condições de acesso iguais, avaliação pelo mérito, acesso à informação
relevante. Este principio está plasmado nos artigos
81.º, alínea f) e 99.º, alíneas a), c) e e) da CRP nos artigos 101.º a 113.º
do TFUE. Com este visa garantir-se o funcionamento equilibrado e eficiente da
economia de mercado e a proteção dos consumidores, sendo a concorrência livre
um fator essencial para que estes dois objetivos sejam cumpridos. Ora, no
presente caso a verdade é que o facto de ter havido um ajuste direto viola
este principio. Fá-lo na medida em que não foi vedada a possibilidade a outras
empresas ou mesmo a outros particulares sequer poderem apresentar a sua
proposta de compra do referido imóvel, não havendo uma concorrência livre e equilibrada. Quanto ao
princípio da igualdade, para além de princípio geral da atuação
administrativa , este pretende proibir também discriminações injustificadas
entre candidatos e garantir que todos os particulares são tratados de forma
igual pela Administração, desde que não haja motivos para os tratar de forma
diferente. O princípio da igualdade ( 266/2 CRP e art6º CPA) foi violado uma
vez que não se deu a hipótese a outros candidatos de apresentarem a sua
proposta. Deste modo , foi favorecido um dos interessados face aos demais ,
que nem se sabe se existem já que não houve abertura da parte de quem vende a
receber mais propostas. Há assim uma clara violação do princípio da igualdade. No entanto,
há também que mencionar o princípio da colaboração com os particulares -
presente no artigo 11º do CPA - em que se afirma a necessidade dos órgãos da
Administração Pública devem atuar em estreita colaboração com os
particulares. A estreita colaboração que trata este artigo não pode ser
indissociável do princípio da concorrência anteriormente mencionado. De
acordo com este tribunal, há violação do princípio da colaboração com os
particulares e da concorrência porque
embora não haja necessidade de abertura de concurso e de um procedimento
específico, há uma obrigação de colaboração com as entidades particulares que
manifestamente não aconteceu. Pelas violação
dos princípios referidos, a venda afigura-se tanto ilegal e inconstitucional. 4. Preço de venda do imóvel e alegações de corrupção e de favorecimento de terceiros. No que concerne ao problema da venda, cabe orientar a decisão de acordo com
as alegações formuladas pela acusação (Associação de Cabeleireiros da Linha), nomeadamente
a propósito de três pontos em discussão: venda por um preço simbólico,
eventual favorecimento de uma empresa de cabeleireiro nascida sob a égide do
município, em face das suas concorrentes; subsequente corrupção. Em rigor, cabe antecipar o entendimento arraigado nos
termos da lei no sentido de que uma venda por um preço simbólico não acarreta
automática e necessariamente uma atuação ilegal por parte da Administração
Pública. Não corresponde sequer necessariamente à verificação de um
favorecimento em virtude de uma prática que configure um vício do ato
administrativo, ergo, o vício de desvio de poder (art.161º, nº2, alínea e) do
CPA), tendo em conta que a prossecução de interesses privados em vez de
interesses públicos, por parte de qualquer órgão ou agente administrativo no
exercício das suas funções, constitui corrupção, e como tal acarreta todo um
conjunto de sanções, quer administrativas, quer penais, para quem assim
proceder. Assim, por um lado, se é verdade que “o preço simbólico
de venda não significa que tenha havido (corrupção) e, eventualmente, a
consolidação de uma situação de inexistência de interesse na continuação da
atividade - conforme advoga a equipa de advogados da empresa municipal -, por
outro, não se justifica também que tenha havido alguma urgência na tomada de
decisão. Não se justifica por força da falta “justificação plausível para a
prestação de um serviço de cabeleireiro por um empresa municipal, uma vez que
este tipo de serviços, só excecionalmente, é prestado por entes públicos”,
tendo em conta duas ordens de razão: o
facto de que semelhante entendimento não consta da Lei n.º 50/2012, de 31 de
Agosto e ainda uma interpretação conforme ao princípio da boa administração
(art.5º do CPA). Aqui, sem
prejuízo de maior aprofundamento no art.41º da Carta de Direitos Fundamentais
da União Europeia (do ponto de vista da legalidade formal), a eficácia e a
economicidade previstas no CPA, traduzem-se na necessidade da AP atuar de acordo com a
necessidade de satisfazer da forma mais eficiente (isto é, “racional,
expedita e económica”, como escreve o Prof. Freitas do Amaral), o interesse
público constitucional e legalmente fixado e de gerir de uma forma ponderada
os dinheiros públicos. Então, não se afigura como legítimo o argumento de que
afirma “exatamente devido ao respeito pelos princípios que determinam a
atuação da Administração Pública, a boa administração da empresa pública é o
motivo fundamental para que esta compra e venda se tenha realizado de forma
célere, eficaz e pouco dispendiosa (art. 5º do CPA) para as partes nela
envolvidas”. Efetivamente houve uma
perda enorme de uma possível receita
avultada para a AP, sendo que só se cumpriu o sub principio da
celeridade. E deste modo, nunca se pode justificar que, por uma maior celeridade,
se abdique totalmente de se garantir a eficácia e economicidade na gestão da
venda. Afinal, seria razoavelmente “expectável” que o imóvel
tivesse obtido algum valor acrescentado, visto que foi alvo de investimento
público, onde se investiu dinheiro público que, em última instância, é
dinheiro dos contribuintes. Por outro lado, ainda a propósito do estado de
necessidade que nos afigura como relevante critério cronológico, temos que o
período de exceção das regras impostas à contratação pública (ou a atuação da
administração que, em particular, esteja sujeita à lei) durante a pandemia
não pode legitimar o status quo de aproveitamento do alívio do controlo para
fazer negócios que, noutra altura, seriam impossíveis, uma vez que, como
refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, esta excecionalidade não constitui uma
exceção ao princípio da legalidade (art.266º e art.3º, nº2 da CRP; art.3º,
nº1 do CPA), mas precisamente uma autorização nos termos da própria lei
(art.3º, nº2 do CPA). Assim, cabe salientar o presente entendimento no sentido
de que o fundamento da constituição da empresa local não se confunde com o
vetor principal subjacente à efetuação da venda, ou seja: se é coerente a
ideia de que “desta forma a Administração viu uma oportunidade de manter um
mínimo de sanidade mental (direito à integridade física, constitucionalmente
protegido no art. 25º da CRP) de modo relativamente simples e eficiente”,
estando em causa o “interesse geral de uma determinada comunidade, o bem comum”,
e o objetivo de combater os efeitos psicológicos da pandemia, não procede de
qualquer forma a noção de que “a boa
administração da empresa pública é o motivo fundamental para que esta compra
e venda se tenha realizado de forma célere, eficaz e pouco dispendiosa (art.
5º do CPA) para as partes nela envolvidas”, mesmo que o fim proporcionado
pela pandemia, que este tipo de serviço visava assegurar mediante uma empresa
pública, deixasse de estar enquadrado no princípio da prossecução do
interesse público. Em rigor, ao argumentar neste sentido, a equipa de
advogados da empresa local comprova, porventura inadvertidamente, o
fundamento de um critério cronológico distinto, isto é, a dois momentos
ponderado. Além disso, também segundo a confusão de fundamentos, não se nos afigura plausível a verificação
de uma relação causal entre o facto de “a venda da loja a um particular não
ter qualquer objetivo lucrativo ou interesse comercial, visto que a
Administração Pública não tem esse tipo de finalidade, mas sim a de zelar
pelo melhor interesse da população atuando durante toda a transação de boa-fé
(art. 10º do CPA)”, e a imposição legal de uma boa administração, na medida
em que não ter o fim não implica não ter o dever (in casu, o dever de
prosseguir o interesse público e a diligência própria de uma boa
administração). Então, embora o argumento que a “a decisão de venda teve
por base a desnecessidade de continuação da atuação administrativa neste
serviço” e que, por isso, “não faria sentido vender a loja e o respetivo
equipamento por o mesmo preço que qualquer outro particular”, não se revela
rigorosa a confusão entre uma diligência imposta por lei (art.5º do CPA) e um
putativo “intuito de ganhar uma vantagem com a venda”. No mesmo sentido,
refere o Prof. Vasco Pereira da Silva que, na prossecução do interesse
público a adoção de uma análise antagónica não deve proceder. Não se pode
prosseguir o interesse público ao mesmo tempo que se agride os direitos dos
particulares. É uma escolha que não pode ser dissociada. E, portanto, ao introduzir este princípio, o legislador
consagrou uma das regras principais do Estado de Direito, que parte da
solução em que o particular e a administração são sujeitos em partes iguais.
Deste modo, não é viável a adoção de
uma posição jurídica em que haja a
realização unilateral quer do interesse coletivo, do interesse público, nem
dos direitos dos particulares. Tem de haver um equilíbrio, que por vezes
tende mais para o interesse público, outras vezes pende mais para o interesse
do privado, mas esse princípio é determinado pelas regras jurídicas, pelas
normas jurídicas, como qualquer outra realidade interpretativa. No fundo, se é possível intuir que a Administração não
deve procurar, no seu fundamento, o lucro numa venda gizada pelo princípio da
razoabilidade (art.7º do CPA), princípio da boa fé (art.10º, nº2 do CPA) e o
princípio da imparcialidade (art.9º do CPA), isso não corrobora uma tese que
desconsidere o interesse de todos aqueles que viram no respetivo imóvel o
investimento de fundos públicos. Tal é, de facto, o argumento da Associação
de cabeleireiros da Linha, quando afirma
que causa “um prejuízo para a Administração, o que é preocupante uma vez que
os fundos utilizados na atividade administrativa provém dos contribuintes,
dos cidadãos. Se estivéssemos no campo das relações entre particulares
poderíamos dizer que cada um é livre para realizar os negócios que queira,
independentemente dos seus benefícios ou desvantagens, mas não é de relações
entre particulares que estamos a tratar; estamos perante uma ação praticada
pela Administração Pública e como tal, existe um conjunto de regras que tem
de seguir, assim afirma o artigo 2.º, n.º 3 do CPA”). Deste modo, não se vê qualquer fundamento para que o
referido imóvel não possa ter sido vendido pelo preço atual de mercado, ou
pelo menos, por um preço bastante superior ao de mil euros. De facto, apesar não
haver matéria de facto que nos permita avaliar o valor específico do salão de
cabeleireiro, poder-se-á rapidamente perceber que um salão de cabeleireiros
com aquelas particularidades teria um valor de mercado de, pelo menos,
algumas centenas de milhares de euros. Deste modo, configura-se
violadora do principio da prossecução
do interesse público e do principio da boa administração, a venda pelo preço
de mil euros. Em todo o caso, como se antecipou, a falta de diligência
da administração (ainda que ilegal, por violação do princípio da legalidade
em sentido amplo) não implica a causal
existência de um o desvio de poder (art.161º, nº2, alínea e) do CPA). Efetivamente,
não parece legítima a ideia de que “onde se afirma que é proibida a
constituição de empresas locais para a prossecução de atividades de natureza
exclusivamente administrativa ou com o intuito exclusivamente mercantil, ou
seja, continuar com esta empresa sem necessidade para tal, é que seria uma
verdadeira corrupção”, que constitui um injustificado entendimento, uma vez
que não são admitidas interpretações sem o mínimo de correspondência verbal,
nos termos do art.9º/2 do CC; nem resulta dos factos razões justificativas
para proceder a uma integração de possível lacuna, nos termos do art.10º/2),
cabe tomar posição quanto ao problema, na medida do possível. O vício específico do poder discricionário corresponde à
substituição de um fim de interesse público por outro fim de cariz privado.
Este é o vício que, à partida, existe no poder discricionário, embora não
seja de excluir a proposta do Prof. Vasco Pereira da Silva, no sentido de que
qualquer poder, por mais discricionário que ele seja, encontra-se sempre
materialmente vinculado, cujo desrespeito corresponde a uma ilegalidade nos
termos já referidos. O legislador veio alargar o elenco, ainda assim meramente
exemplificativo, dos atos nulos previstos no nº1. Fê-lo reconhecidamente, no
seguimento, quer da doutrina quer da jurisprudência, precisamente a propósito
de atos cujo fim seria a prossecução de um interesse privado ilícito (v.
alínea e). De todo o modo, ao contrário do que pretende demonstrar
a equipa de advogados da Associação de Cabeleireiros, não se revela
inequívoca e clara a “clara existência de corrupção e favorecimento de uma
empresa de cabeleireiro, no sentido em que este se traduz numa ilegalidade
por violação do princípio da imparcialidade”, na medida em que não se
verifica nenhum caso de impedimento previsto no art.69º do CPA, sem prejuízo
de eventual ponderação nos termos do art.73º/2 do CPA. Afinal, como advoga a
própria equipa de advogados da Associação, mesmo que no art.9º do CPA este
princípio afirme que a Administração Pública deve tomar decisões determinadas
exclusivamente com base em critérios objetivos de interesse público, não
sendo tolerados que tais critérios sejam distorcidos por influência de
interesses alheios à sua função, “não há informações para saber se foi
violado, mas apenas o da prossecução do interesse público”. Ademais, procede o preceito de que “devem ser
considerados parciais os atos que não resultem de uma exaustiva ponderação de
interesses juridicamente protegidos, o que dá azo a um limite à
discricionariedade administrativa, uma vez que o verdadeiro poder de escolha
da autoridade pública subsiste onde a proteção legislativa dos vários
interesses seja de natureza e medida iguais.” Deste modo, não há razões suficientes para se averiguar
ou não a violação do principio da proporcionalidade, considerando-se, pela
falta de prova, que não foi violado. Para efeitos de
concretização do caso cabe ainda aferir outro princípio que foi igualmente
considerado pela acusação, designadamente o princípio da proporcionalidade,
consagrado no art.266º, nº2 da CRP e no art.7º do CPA, em necessária
articulação com as regras de concorrência (valor fundamental do ordenamento
jurídico português), nos termos do art. 81º, alínea f) e art.99º, alíneas a),
c), e) da CRP, assim como consagrado no Direito da União Europeia (artigos
101.º a 113.º do TFUE, por força do art.8º, nº4 da CRP), “que visa garantir o
funcionamento equilibrado e eficiente da economia de mercado e a proteção dos
consumidores.”. Ora, o princípio da Proporcionalidade divide-se em três
critérios: ad adequação, necessidade e proporcionalidade stricto
sensu. Defende a equipa de advogados da associação que “a
prática de um preço simbólico na venda de bens públicos viola este princípio,
nomeadamente a terceira vertente, uma vez que, sendo o benefício da venda o
dinheiro com ela obtido, o prejuízo será muito superior.” Além disso,
argumenta-se que haveria “mais custos do que benefícios, como um possível
desequilíbrio do mercado local, desfavorecendo e colocando em risco os
pequenos empreendedores, o que afetaria diretamente no lucro dessas empresas
e as condições económicas e sociais das famílias que beneficiam desse
empreendimento.” Na medida em que não é possível extrair da matéria de
facto informações suficientes que permitam fazer esse juízo comparativo,
temos que se afigura imprescindível a evocação de outros princípios que em
rede e simultaneamente legitimam e limitam a atuação da Administração
Pública. Como se refere, “as decisões sobre a alienação de propriedades
públicas estarão sempre subordinadas à determinação da solução que melhor
sirva a prossecução do interesse público, avaliado com base em critérios de
oportunidade e racionalidade económica, nos termos do art.4° e 5.° do CPA.
Por fim, sem prejuízo de aprofundamento da questão do procedimento e do
fundamento da venda, temos que a violação do princípio da proporcionalidade
(concretizado pelo princípio da prossecução do interesse público), isto é, a
violação em sentido material de normas e princípios, coloca em causa a
legalidade e a constitucionalidade do próprio procedimento administrativo
(sede imprescindível de tutela dos interesses legalmente protegidos dos
cidadãos). Neste sentido, embora seja de excluir a existência de um
favorecimento (e, por conseguinte, corrupção), quer por falta de matéria e de
provas factuais, quer por segurança e certeza jurídicas na tutela da eventual
confiança e boa fé da parte contratante (art.10º, nº1 do CPA), a venda pelo preço em questão contraria
inequivocamente o princípio da prossecução do interesse público (art.4º do
CPA) e da boa administração (art. 5º do CPA),- reciprocamente concretizado
pelo princípio da proporcionalidade (art.7º do CPA) e da imparcialidade
(art.9º do CPA), cabendo concluir pela ilegalidade da mesma, por violação do
princípio da legalidade em sentido material (art.3º, nº1 do CPA; art.2º, nº3
do CPA). VI. Conclusão Por todas as razões enunciadas, acordam os juízes e
decidem-se: 1. Pela anulabilidade da venda, nos termos do artigo 163º
do CPA, devido à insuficiência da justificação dada para a venda, nos termos
do artigo 152º do CPA. 2. Pela ilegalidade e inconstitucionalidade da venda, por
violação do principio da igualdade, do principio da concorrência e do
principio de colaboração com os particulares, relativamente à falta de
procedimento na venda e ao facto de esta ter sido feita por ajuste direto. 3. Pela ilegalidade da venda por violação do princípio da
prossecução do interesse público (art.4º do CPA), do principio da boa
administração e do princípio da proporcionalidade (art.7º do CPA) e da
imparcialidade (art.9º do CPA). Notifique-se todas as partes. Linha, 29 de maio de 2024 Os juízes, Tomás Castello Branco Ricardo Gordilho Vicente Marques Manuel Siqueira |
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