Regulamento administrativo, ato administrativo e a distinção | Beatriz Reis Sacramento

Introdução:
    O propósito fundamental da presente exposição é promover o entendimento das conceções de ato administrativo e regulamento administrativo presentes na doutrina, a sua aplicação no contexto do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e a sua distinção.

Regulamento administrativo: 
    O legislador define o regulamento administrativo, no art. 135.º CPA como “...as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício dos poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”. 
  O Professor Freitas do Amaral define o regulamento como “normas jurídicas emanadas do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei”. 
  Quanto ao Professor Vieira de Andrade defende que os regulamentos administrativos são “o nível inferior do ordenamento administrativo”, sendo os níveis superiores ocupados pelas normas e princípios de direito internacional e de direito da união europeia, assim como pelas normas e princípios constitucionais e pela lei ordinária. Desta forma, os regulamentos são uma fonte secundária do direito administrativo – enquanto fonte secundária dependem fundamentalmente da Constituição, sendo esta o seu parâmetro de validade. Assim, pode padecer de ilegalidade, se contrariar uma lei ordinária ou de valor reforçado, ou de inconstitucionalidade, se atentar contra uma norma constitucional. 
   O Professor Vasco Pereira da Silva, é crítico desta formulação consagrada no art. 135.º, formulação que é de 2015 e, portanto, não existia no CPA de 1991, que se reportava simplesmente aos regulamentos enquanto normas jurídicas. A primeira crítica que o Professor faz é que ao se falar dos efeitos jurídicos externos, tal como se faz no ato, parece que o legislador está a excluir da regulamentação os regulamentos internos. Ou seja, parece haver um ressuscitar da ideia de que há regulamentos internos que não estão submetidos ao CPA, o que já em 1933 o Professor Marcello Caetano considerava inadmissível, quanto mais à luz da Constituição de hoje. A outra crítica feita pelo Professor é a de que, em vez de normas jurídicas gerais e abstratas, o artigo devia dizer gerais ou abstratas, uma alternativa (“ou”) e não uma conjunção (“e”). Esta ideia remonta pra dois conceitos que estão intrinsecamente relacionados ao regulamento, a generalidade e a abstração. 
    A generalidade tem a ver com o destinatário das normas. Ou seja, quando dizemos que um regulamento é geral, ou que uma norma é geral, dizemos que tem uma pluralidade de destinatários que não são identificados individualmente, a não ser através de uma categoria geral. De acordo com o Professor, basta que haja generalidade ou abstração para que tenhamos um regulamento. De forma a sustentar esta ideia, o Professor apresenta os seguintes exemplos: “O Presidente da Câmara de Lisboa determina que todas as lojas do município, no dia de Santo António, devem colocar um manjerico na montra” – trata-se de uma norma genérica por se aplicar a todos os comerciantes de Lisboa, que são uma categoria de pessoas que nós não conseguimos identificar nominalmente. Aplica-se num único momento (dia de Santo António), pelo que é concreta, mas geral. Quanto a isto, o Professor diz que se deve considerar um regulamento, precisamente porque tem a característica da generalidade. Outra situação que o Professor considera oposta: “Se houver uma norma jurídica que se refira ao Presidente da Câmara (qualquer situação que diga respeito ao Presidente da Câmara), é abstrata, mas não se aplica apenas ao Presidente. Atualmente, aplica-se ao Doutor Carlos Moedas, mas também a quem vier ocupar o cargo futuramente. Portanto, aqui temos uma norma, que não é geral, mas abstrata e individual. Assim, de acordo com o Professor, os critérios misturam-se e basta que esteja presente uma das características do regulamento para que se trata de um. 
 
    Segundo o Professor Freitas do Amaral tem três elementos essenciais: 
1.    Elemento de natureza material: o regulamento consiste em normas jurídicas, dada a sua generalidade, aplicando-se uma pluralidade de destinatários, e abstração, aplicando-se a uma ou mais situações previstas na previsão normativa – não sendo apenas um preceito administrativo, é uma verdadeira regra de direito; 
2.    Elemento de natureza orgânico-formal: o regulamento é emitido por um órgão de uma pessoa coletiva pública que integra a Administração Pública, por entidades públicas que não integram a administração ou por entidades de direito privado que prossigam fins públicos, sendo que têm sempre que ter habilitação legal para o emitir (art. 136.º CPA); 
3.    Elemento de natureza funcional: o regulamento é emanado do exercício do poder administrativo – mesmo que sejam emanados pelo Governo ou pelas Assembleias legislativas das Regiões Autónomas, desde que estes atuem no desempenho das suas funções administrativas. 
 
    As espécies de regulamentos são determinadas a partir de quatro critérios: 
1.    A sua relação com a lei – o regulamento pode ser complementar ou de execução (aqueles que desenvolvem a disciplina jurídica constante de uma lei) e independente ou autónomo (aqueles que não desenvolvem nem complementam nenhuma lei em especial); 
2.    Objeto – relativamente a este critério, os regulamentos podem ser de organização (distribuem as funções pelos vários departamentos da administração, ou seja, organizam as tarefas administrativas), de funcionamento (disciplinam o funcionamento da administração) ou de polícia (limitam a liberdade individual, de modo a que estes não prejudiquem a vida social); 
3.    Âmbito da sua aplicação – quanto a este critério, os regulamentos podem ser gerais (vigoram em todo o território nacional), locais (aplicam-se apenas a um território delimitado) ou institucionais (são criados por institutos públicos ou por associações públicas e têm como destinatários as pessoas nele integrados; 
4.    Projeção da sua eficácia – no âmbito do quarto critério, os regulamentos podem ser internos (produzem efeitos dentro da entidade de que são emanados) ou externos (produzem efeitos relativamente a outros indivíduos que não apenas os integrados na entidade que os emanou). 
  
Ato administrativo: 
    O conceito de ato administrativo nasceu em França, no séc. XIX, e alastrou-se noutros países, como a Alemanha, a Itália e os restantes países que sofreram influência do sistema administrativo Francês. 
   Para o Professor Freitas do Amaral o ato administrativo é o “ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. O Professor João Caupers acaba por concordar com a definição dada pelo Professor Freitas do Amaral, e defende que o ato administrativo é, antes de mais, um ato jurídico, ou seja, uma conduta voluntária geradora de efeitos jurídicos. Este autor inclui no ato administrativo 5 elementos essenciais: (1) ser um ato jurídico; (2) ser unilateral; (3) ser um ato da administração pública, ou seja, um ato praticado por um órgão pertencente a uma organização pública; (4) que visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta; e (5) que seja uma decisão. 
    A definição de ato administrativo apresenta alguma divergência por parte da doutrina. Alguns autores defendem que apenas são atos administrativos os atos jurídicos, outros autores defendem que as operações materiais da Administração Pública também se incluem na categoria de atos administrativos, outros ainda defendem que também se integra nesta categoria os atos organicamente administrativos, e há quem diga que os atos materialmente administrativos também se incluem. 
 
    O CPA define no seu art. 148.º, o ato administrativo como “(...)decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”.
 
    A doutrina diverge também relativamente à caracterização os elementos do ato administrativo, assim como quanto à sua natureza jurídica. Para alguns autores, o ato administrativo tem carácter de negócio jurídico, para outros, o ato jurídico tem natureza de sentença judicial, e para outros, como, por exemplo, para o Professor Freitas do Amaral, este não tem características nem de negócio jurídico nem de sentença judicial, tem sim uma natureza própria, “enquanto ato unilateral de autoridade pública ao serviço de um fim administrativo”. 
    Segundo o Professor Freitas do Amaral, os atos administrativos têm 4 elementos essenciais, que compõe a sua estrutura:
1.    Elementos subjetivos: para haver ato administrativo é preciso que exista uma relação entre dois sujeitos, sejam eles a administração e um privado ou dois entes públicos; 
2.    Elementos formais: todos os atos administrativos têm, obrigatoriamente, que ter uma forma, ou seja, “um modo pelo qual se exterioriza ou manifesta a decisão voluntária em que o ato consiste”, seja ela escrita ou oral; 
3.    Elementos objetivos: além de sujeitos e de forma, os atos administrativos têm que ter também conteúdo (“substância da decisão voluntária em que o ato consiste”) e um objeto (“realidade exterior sobre que o ato incide”); 
4.    Elementos funcionais: o ato administrativo engloba ainda uma causa, um motivo e um fim; 
 
    Relativamente às espécies de atos administrativos, o Professor Freitas do Amaral diz que estes se dividem em dois grandes grupos: os atos primários – “aqueles que versam pela primeira vez sobre uma determinada situação da vida”; e os atos secundários – “aqueles que versam sobre um ato primário anteriormente praticado”; - sendo que dentro de cada um dos grupos existem várias subdivisões. 
    Dentro dos atos primários temos os atos impositivos (impõe que alguém adote uma determinada conduta ou colocam o seu destinatário numa situação de sujeição a um ou mais efeitos jurídicos), atos punitivos (impõe a alguém uma determinada sanção de carácter administrativo) e atos permissivos (permitem a alguém a ação ou omissão de uma determinada conduta que de outro modo lhe estaria vedado).
   Diferentemente, os atos secundários subdividem-se em: atos integrativos (complementam atos administrativos anteriores), atos saneadores (atos transformadores de um determinado ato anulável em ato válido e/ou insuscetível de impugnação contenciosa) e atos desintegrativos (reportam-se a atos cujo conteúdo é contrário ao de um ato anteriormente praticado). 
 
 
Distinção entre ato e regulamento: 
    Quanto à distinção entre ato e regulamento, seguindo a linha de raciocínio proposta pelo Professor Freitas do Amaral: 
1.    Interpretação e integração: no caso do regulamento, este é interpretado e as suas lacunas são integradas de acordo com as regras de interpretação e integração das leis; contrariamente, a interpretação e integração de lacunas no ato administrativo faz-se através das regras próprias da interpretação e integração do ato administrativo; 
2.    Vícios e formas de invalidade: o regime dos vícios e da validade não é idêntico no regulamento e no ato, sendo que se aplica ao regulamento o paradigma das leis, e ao ato aplica-se, embora com algumas exceções, o modelo do negócio jurídico; 
3.    Impugnação contenciosa: também nesta matéria o regime do regulamento e do ato diferem – os regulamentos podem ser considerados ilegais em quaisquer tribunais, sendo que o ato administrativo apenas pode ser declarado nulo ou anulado pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos competentes para tal. 
 
    O Professor Freitas do Amaral defende que a distinção entre regulamento e ato administrativo se reconduz à distinção entre norma jurídica e ato jurídico, pois ambos são “comandos jurídicos unilaterais emitidos por um órgão competente no exercício de um poder público de autoridade”, sendo que o regulamento é geral e abstrato (assim como a norma jurídica), enquanto que o ato administrativo é uma decisão individual e concreta (tal como o ato jurídico). 
    O regulamento, sendo geral e abstrato, define os seus destinatários através de conceitos globais, sem individualizar ninguém, definindo as situações de vida em que se aplica também por meios de conceitos gerais. 
    Diferentemente, o ato administrativo é individual e concreto, ou seja, reporta-se a uma ou mais pessoas determinadas e a uma situação da vida específica. 
    O regulamento não se esgota numa aplicação, dada a sua abstração – pelo contrário, este aplicar-se-á sempre que se verifiquem as situações previstas para a sua aplicação. 
    Diferentemente, o ato administrativo só se aplicará numa atuação concreta para aqueles destinatários em questão, dada a sua especificidade e aplicabilidade naquele caso e para aquele determinado sujeito ou sujeitos. 
    Sendo o regulamento constituído por normas jurídicas, e caracterizando-se pela sua generalidade e abstração, este difere muito do ato administrativo – dada a sua especificidade, tendo em conta que este é individual e concreto. 

Beatriz Reis Sacramento
N.º de aluno: 67903
Turma B, subturma 14

Bibliografia: 

  • AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. Volume II. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2016.
  • COUPERS, João. Introdução do Direito Administrativo. 7º edição. Lisboa: Âncora Editora, 2003.
  • SILVA, Vasco Pereira da. Aulas Teóricas da turma B, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2024.
Legislação: 
  • Código do Procedimento Administrativo (CPA); 


 

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