Princípio da Legalidade enquanto limite da atuação administrativa

 
Princípio da Legalidade
enquanto limite da atuação administrativa



Introdução


    Um olhar sobre o princípio da legalidade requer uma caracterização prévia da Administração Pública enquanto “poder público”[1] e na sua relação com os particulares.

    Autores como Marcello Caetano, que entendiam Administração como um verdadeiro poder (“administração em sentido formal”), entendiam não se tratar a relação Administração-administrados como uma relação de igualdade. 

    Freitas do Amaral, entende a Administração como um “verdadeiro poder”, a quem cabe a faculdade de estabelecer normas jurídicas e de tomar decisões obrigatórias para os seus destinatários e com capacidade de execução coativa das mesmas.

    Vasco Pereira da Silva, entende que a relação que se estabelece entre a Administração e os particulares é de uma “igualdade paritária”[2]. Rejeita a expressão “administrados”, pois que remete para o objeto da Administração, algo que considera ser fruto dos traumas de que o Direito Administrativo ainda sofre algumas consequências, e reforça que a haver alguma superioridade seria do lado dos particulares – sujeitos desta relação tutelados pelo princípio basilar do Estado de Direito, a dignidade da pessoa humana (art.1º, Constituição da República Portuguesa, adiante CRP).

    Por forma a tomar como acertada a afirmação de que “Administração e particulares se relacionam numa base de igualdade”, cumpre apresentar as manifestações do poder administrativo e, de seguida, contrapô-las às garantias dos particulares.

    Quanto às manifestações do poder administrativo, Freitas do Amaral distingue várias:

  1. poder regulamentar – ao contrário do sistema administrativo britânico em que a Administração apenas pode fazer regulamentos quando essa competência lhe é delegada por lei, no nosso sistema, cabe à Administração, por força da própria constituição (199º/c)), a competência de criar direito através de regulamentos, que, como se sabe, são uma fonte imediata de direito, com verdadeiro caráter normativo, cujas normas dotadas de generalidade e abstração são vinculativas para os seus destinatários, podendo ser impostas coativamente e cuja não observação pode levar (como com qualquer norma jurídica) à aplicação de sanções.
  2. poder de decisão unilateral – através dos atos administrativos, a Administração pública decide situações individuais e concretas, derivando este poder da sua própria autoridade enquanto poder público, não carecendo de acordo do destinatário da decisão nem de validação judicial, ou seja, perante um caso individual e concreto, a Administração define o direito aplicável e decide sem recurso (prévio) aos tribunais e de forma obrigatória para o particular envolvido (alguns autores referem este fenómeno como uma manifestação da “autotutela administrativa” [3]).
  3. poder de execução coerciva – na senda de Freitas do Amaral, à Administração cabe não somente o poder de decidir unilateralmente, sem recurso aos tribunais e com efeitos vinculativos para os particulares como também de impor ou executar essas mesmas decisões de forma coativa e igualmente sem necessidade de uma validação prévia dos tribunais; à Administração não cabe somente o poder de definir o direito aplicável, como também de o impor (coação) e, se necessário, com recurso à força (coercibilidade).
  4. poderes especiais do contraente público nos contratos administrativos – a par do regulamento e do ato administrativo, a atuação administrativa passa também pela figura do contrato administrativo, através de um acordo estabelecido com os particulares, sendo que em sede desta figura a Administração não detém uma posição jurídica equivalente a uma qualquer arte num contrato civil, tem a seu lado poderes “especiais” nomeadamente em sede de modificação e resolução do contrato (por conveniência do interesse público.
  5. Assim se denota, à partida, uma posição largamente mais vantajosa para a Administração face aos particulares, que parecem de facto não mais que objeto da atuação administrativa.

A Administração, sendo um “verdadeiro poder”, tem competência para criar direito através dos regulamentos administrativos (1), de definir e aplicar o direito através do ato administrativo (2), detendo para isso de capacidade para impor as suas decisões unilaterais – coação – e, se necessário através da força – coercibilidade – (3), possuindo uma posição jurídica de vantagem face ao co-contraente particular em sede de contrato administrativo (4). A pergunta que se impõe é pois: será verdadeiramente uma relação de igualdade a que se estabelece entre a Administração e os particulares? Se sim, então quais são os instrumentos que o sistema jurídico utiliza para limitar poda esta “auctoritas” da Administração?

Sendo esta pergunta o ponto de partida deste trabalho, a resposta será o ponto de chegada: o instrumento utilizado pelo sistema é o próprio sistema. Os limites ao poder administrativo são a própria lei (e o Direito…) vejamos como.


Princípios limitadores da atividade administrativa


As linhas orientadores que o sistema dá ao poder administrativo para enquadrar a sua atuação, protegendo os interesses dos particulares, tem uma expressão fundamental nos princípios constitucionais limitadores desta.
A CRP, no seu art.266º, consagra oito princípios estruturantes:
                              . princípio da prossecução do interesse público
                              . princípio do respeito pelos direitos e interesses dos particulares
                              . princípio da legalidade
                              . princípio da igualdade
                              . princípio da proporcionalidade
                              . princípio da justiça
                              . princípio da imparcialidade
                              . princípio da boa-fé
 
    A este elenco fundamental, a lei (CPA) acrescenta ainda outros, nomeadamente o princípio da colaboração com os particulares (art.11º), da participação (art.12º), da responsabilidade (art.16º), … – só para elencar alguns.
Desta forma, o ordenamento jurídico decide enquadrar a atividade administrativa através de uma série de princípios a que a Administração, assim como os seus órgãos, agentes e atos estão subordinados. Cabe distinguir princípios e regras de modo a entender o modo como os primeiros limitam a administração: enquanto que as regras jurídicas podem ser permissivas, prescritivas ou proibitivas, e se aplicam aos seus destinatários verificados os pressupostos da sua estatuição numa dinâmica de “tudo ou nada”; os princípios são vetores para valores, vinculando os destinatários a uma obrigação de resultado. Assim, enquanto que regras são insuscetíveis de coexistência com outras de sentido contrário (levando a um dos tipos de desvalor de uma ou de outra), os princípios coexistem, e conforma-se caso a caso dependendo do bem jurídico mais relevante a proteger ou interesse em causa, por decisão do intérprete-aplicador [3].
Não releva agora a discussão (embora muitíssimo interessante) de se os princípios se aplicam per se ou se apenas caso a caso dão azo a normas que os concretizam, nem tão pouco as posições que a este respeito muito seriam de ilustrar, por isso, aquilo que é de realçar é que: o conteúdo material dos vários princípios que o sistema jurídico consagra são, em primeira linha, a forma de limitação da atividade administrativa e, por consequência, a fora de proteção dos particulares nos seus direitos e interesses.
Importa também referir que muitos outros princípios podem também ser eficazmente chamados para esta limitação da atividade administrativa, tanto de origem interna como de origem exterior. Cabe sempre lembrar as lições do Professor Vasco Pereira da Silva quanto à relevância multinível do direito enquanto realidade subordinadora da Administração, encontrando se esta não só vinculada à lei (em sentido formal) mas ao Direito – art.3º, CPA (“bloco de legalidade” como refere Freitas do Amaral ou “bloco de constitucionalidade” na senda de Jorge Miranda). Independentemente do termo designativo, o que importa é a certeza da vinculação do poder administrativo à ordem jurídica interna assim como ao ordenamento eurocomunitário e ainda à ordem internacional (tendo em conta as regras e os princípios subjacentes a todos estes). Não obstante seguir-se a posição de Vasco Pereira da Silva quanto a esta vinculação da Administração ao Direito como bloco, discordo da expressão “multinível” como caracterizadora deste último, pois remete para uma ideia de hierarquia, estando o ordenamento interno subordinado ao europeu e internacional – algo que, salvo o devido respeito, considero não ser exato: aquilo que penso existir, com Maria Luísa Duarte, é uma relação de complementaridade e de internormatividade entre o sistema interno e os sistemas europeu e internacional, não prevalecendo as normas europeias e internacionais sobre as internas porque são hierarquicamente superiores, mas porque são “materialmente competentes”[4] para o caso concreto.
    Não obstante esta questão, o importante a reter será que o poder administrativo se encontra subordinado não só à lei mas ao Direito no seu todo, incluindo aqui não só as regras e princípio das ordem interna mas também os europeus e internacionais.
Da perspetiva inversa, também cumpre referir, com Vasco Pereira da Silva mais uma vez, que a Administração também se encontra vinculada ao direito infralegal: à sua própria atuação, quer se materialize através de regulamentos, atos ou contratos administrativos [5].
Aqui se denota a importância fundamental do princípio da legalidade 8aqui feito corresponder ao princípio da juridicidade: é, a meu ver, o primeiro dos princípios limitadores do poder administrativo.
    Não farei em sede deste trabalho desenvolvimentos quanto à relevância do princípio da competência enquanto manifestação do princípio da legalidade. Direi apenas que é mais uma das formas de realçar a vinculação do poder administrativo à lei – a Administração apenas atua caso a caso no âmbito da norma que a habilita para cada um desses casos, daí que também esteja vinculada ao fim dessa norma e ao âmbito material da mesma.

Princípio da Legalidade


Do acima já dito, compreende-se a relevância primordial deste princípio limitador da atividade administrativa: subordinando o poder administrativo a todas as normas e princípios do Direito (entendido este na sua “globalidade”[6]). Diria que é, nada mais nada menos, o princípio que abarca todos os outros.

Tendo por objeto todo o tipo de comportamentos da Administração, desde os regulamentos, aos atos e contratos administrativos e ainda aos simples factos jurídicos, deste princípio decorrem dois vetores concretizadores: a preferência e a reserva de lei - neste sentido Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado Matos[7].

Da preferência de lei resulta que nenhum ato de categoria inferior à lei a pode contrariar, sob pena de ilegalidade. Não só este sub-princípio implica uma obrigação de não contrariar a lei (entenda-se o tal “bloco legal”) mas uma obrigação de a Administração agir perante uma ilegalidade, repondo a validade violada[8].

Da reserva de lei resulta que toda a atuação administrativa deve ter por fundamento uma norma (do tal “bloco de legalidade”) que a habilite para tal. Nem sempre assim foi entendido  princípio da legalidade nesta vertente da reserva de lei, passou-se de uma legalidade (formal) que apenas limitava a atuação administrativa para uma juridicidade que não só limita como fundamenta a atuação administrativa. Assim, não só a Administração se deve subordinar à lei no sentido de não praticar atos que a violem (preferência de lei) como apenas pode atuar no âmbito pré-estabelecido pela própria lei (reserva de lei).

Por fim, quanto a este princípio, cumpre apenas tomar posição sobre se este se aplica a todas as atuações administrativas ou apenas às atuações ditas “agressivas” – as que impõem sacrifícios aos particulares. Considero, com Freitas do Amaral, que se aplica a todas. Em primeiro porque o art.266º/1 quando refere o princípio da legalidade não restringe o seu âmbito de aplicação; em segundo lugar porque também as atuações ditas “constitutivas” ou “prestadoras” – que atribuem direitos ou posições de vantagem aos particulares – podem ser, reflexamente, lesivas de direitos e interesses de outros particulares (quando se atribui uma bolsa a R e não se atribui a P, por exemplo, pode estar em causa a violação do princípio da imparcialidade); por fim, como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, no Estado Pós-Social em que vivemos, caracterizando-se a Administração como “Reguladora”, a maior parte das suas atuações são constitutivas ou prestadoras e num contexto de uma multilateralidade que não é de ignorar.


Conclusão


Após este breve desenvolvimento sobre o princípio de legalidade como limite e fundamento do poder administrativo, não é com estranheza mas pelo contrário com alguma segurança que posso, com Vasco Pereira da Silva, afirmar: que Administração Pública e Particulares se relacionam numa base de igualdade.

Ao analisar as manifestações do poder administrativo podemos, à primeira vista, ser levados a pensar que a Administração Pública ainda atua autoritariamente, impondo as suas decisões unilateralmente, podendo gozar de coercibilidade, agredindo ou lesando direitos e interesses dos particulares, no entanto, ao ter em conta o princípio da legalidade damos por certo que toda a atuação administrativa está absolutamente subordinada ao Direito. Não só não o podendo contrariar mas apenas podendo agir tendo-o por fundamento.
Por tudo isto, refere Vasco Pereira da Silva, que pesembora a Administração tenha do seu lado os poderes inerentes a um poder público, os Particulares têm a dignidade da pessoa humana, pois que este princípio fundamental (art.1º, CRP) está na base do Estado de direito, ao qual se submete a Administração.

  

FIM



Bibliografia

[1] FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo, Volume I, (4ª edição), 2020, Almedina.

[2] PEREIRA DA SILVA, Vasco. Direito Constitucional e Administrativo Sem Fronteiras, 2019, Almedina.

[3] MARCHANTE, João Pedro Charters. Das Deteção de Lacunas no Direito Civil Português, 2022, FDL.

[4] DUARTE, Maria Luísa. Direito da União Europeia, 2023, AAFDL Editora

[5] PEREIRA DA SILVA, Vasco. Direito Constitucional e Administrativo Sem Fronteiras, 2019, Almedina.

[6] PEREIRA DA SILVA, Vasco. Direito Constitucional e Administrativo Sem Fronteiras, 2019, Almedina.

[7] SOUSA, Marcelo Rebelo de / MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2008, Dom Quixote

[8] OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo

 

Manuel Siqueira_____Turma B / Subturma 14_____03.05.2024

 

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