O estado de necessidade no Direito Administrativo e a sua conjugação com o Princípio da Legalidade - Rodrigo Ferreira da Costa

O estado de necessidade no Direito Administrativo e a sua conjugação com o Princípio da Legalidade



1. Introdução
2. Princípio da legalidade
3. Estado de necessidade
4. Possível expeçam ao princípio da legalidade
5. Exemplo de desrespeito do princípio da legalidade e inconstitucionalidade face ao estado de emergência
6. Limites e controlo do estado de necessidade
7. Conclusão


1- Introdução:

A atuação da Administração Pública é regulada por vários princípios, encontrando-se no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP, os seus princípios fundamentais, sendo estes: o princípio da prossecução do interesse publico, princípio da igualdade, princípio proporcionalidade, princípio da justiça, principio da imparcialidade, princípio da boa fé, e no tocante aos órgãos e agentes administrativos se encontrarem subordinados à Constituição e à lei, sendo possível assim extrair  o principio da legalidade. É possível também encontrar o princípio da legalidade no artigo 3.º n.º1 do Código de Procedimento Administrativo, daqui em diante CPA.

De acordo com o Professor Diogo Freitas do Amaral os princípios pela sua própria natureza dão azo a uma flexibilidade de interpretação, assim tem de ser conjugados na sua aplicação com outros princípios. A Administração Pública prossegue o interesse publico, contudo não de maneira arbitraria, mas sim com regras e princípios que iram definir o seu modo de atuação, e neste momento que entra o princípio da legalidade em conjunto com outros, ou seja, a Administração Publica prossegue o interesse publico, contudo, esta sempre sujeita a atuar dentro e conforme a legalidade.

2- Princípio da legalidade:

Tal como supramencionado o princípio da legalidade pode ser extraído do artigo 266.º, n.º2, CRP e também presente no artigo 3.º do CPA.

A abordagem a este Principio tem sofrido alterações ao longo do tempo, enquanto que na sua abordagem mais tradicional, o Professor Marcello Caetano usava-o como uma limitação à própria ação Administração, o Professor Diogo Freitas do Amaral traz-nos uma abordagem mais atual onde o princípio da legalidade é o limite da atividade administrativa e aos mesmo tempo é o próprio fundamento dessa ação, no seu ver este principio é um dos mais importantes princípios gerais ligados à Administração, para este autor a visão do professor Marcello Caetano consiste numa proibição, a de a Administração lesar os direitos dos particulares salvo se autorizado por lei. Assim a visão do Professor Diogo Freitas do Amaral difere da visão do Professor Marcello Caetano em três aspetos principais:

O princípio da legalidade ser agora um princípio que é definido de uma forma positiva e não de uma forma negativo, não dizendo à Administração o que é proibida de fazer, mas sim o que pode ou deve fazer.

Ira cobrir todos os aspetos da atividade administrativa e não só os que possam a vir lesar os direitos dos particulares, também pelo facto que o princípio da legalidade não visa apenas a proteção dos interesses dos privados, mas também a proteção do interesses publico.

Por último e tal como já mencionado a lei não é a lei não é só um limite à forma de atuação da Administração, mas é também o seu fundamento, ou seja, a Administração não atua só no que a lei não permite, mas sim apenas no que a lei lhe permite atuar.

O professor Diogo Freitas do Amaral diz-nos também que esta diferença da sua visão que é também a visão mais atual para a visão do Professor Marcello Caetano, vem da evolução histórica, tanto dos sistemas políticos como do Direito público na Europa.

3- Estado de necessidade:

Preceituado no n.º2 do artigo 3.º do CPA, diz-nos que os atos administrativos praticados em estado de necessidade mesmo com preterição das regras estabelecidas são validos, desde que o resultado almejado não pudesse ser alcançado de outro modo, contudo mesmo sendo validos estes atos os lesados continuam a gozar do direito a serem indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração.

É importante perceber que a figura do estado de necessidade que é largamente aceite pela doutrina e jurisprudência, esta pensado para situações limite, como é o exemplo de uma pandemia ou estado de guerra. O estado de necessidade é admitido para em casos como os mencionados, onde existem valores públicos que têm de ser salvaguardados pois existe uma verdadeira emergência publica.

Tal como disposto no artigo 3.º, n.º2 do CPA, a preterição de regras é apenas mencionada no diploma em questão, ou seja, as regras presentes no CPA, contudo os professores Marcelo Rebelo de Sousa e Diogo Freitas do Amaral devemos igualmente interpretara-lo no sentido mais amplo de forma a legitimar também o eventual incumprimento de preceitos legais que constem de outros diplomas.

O professor Marcello Caetano diz-nos que, a exigência presente para que um ato administrativo seja praticado na sequência de um procedimento composto de atos e formalidade, é quão mais importante quando da sua pratica possa resultar a privação de direitos subjetivos de outrem, e no decorrer normal do procedimento, se tais atos e formalidades não forem respeitadas, havendo assim preterição das regras presentes nos diplomas legais, o ato resultante seria havido como inexistente ou invalido, dando assim aso à nulidade ou anulabilidade. Contudo existem casos em que tais atos e formalidades podem ser levantados, justamente de atuação em estado de necessidade, nas palavras do autor o estado de necessidade “consiste na atuação sob domínio de um perigo iminente e atual para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente”.

De acordo com o Supremo Tribunal Administrativo (STA), o “estado de necessidade consiste na atuação objeto de permissão normativa à margem do princípio da legalidade em sentido estrito, face a circunstâncias excecionais de perigo iminente e atual (urgência) para um interesse público essencial e para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente, se de outro modo não puder ser alcançado o mesmo resultado”.
Através também do STA podemos perceber quais os pressupostos do estado de necessidade que não são encontrados no artigo 3.º, n.º2 do CPA, são estes:

Requisito temporal da urgência
Perigo atual e iminente por factos graves e anormais
Interesse publico essencial, a entender em juízo de proporcionalidade
O interesse publico julgado mais relevantes que os interesses públicos preteridos.


4- Possível exceção ao princípio da legalidade

Tal como previamente mencionado o instituto do estado de necessidade, que em circunstâncias excecionais e em que esteja em causa situações de necessidade publica superiores, a Administração publica fica dispensada de seguir o processo legal estabelecido que tem de ocorrer em situações normais, mesmo que implique o sacrifício de direitos e interesses dos particulares, dando a visão de uma expeçam do princípio da legalidade.

De acordo com o professor Diogo Freitas do Amaral, o estado de necessidade não exterioriza uma exceção ao principio da legalidade, pois é através da própria lei que o estado de necessidade toma forma, tal como disposto no artigo 3.º, n.º2 do CPA, para este autor o instituto iria sim consistir numa legalidade opcional, não significando assim que o estado de necessidade dispensasse qualquer fundamento legal, pois mesmo durante o período em que o estado de necessidade se encontra em vigência continua a existir um ordenamento jurídico, e mais uma vez é a própria lei que legitima a existência do estado de emergência. 

Por sua vez o professor Paulo Otero considera que existe uma legalidade alternativa, que é admitida quando os requisitos do estado de necessidade se encontrem verificados, contudo o professor ainda acrescenta que para que o estado de necessidade seja justificado a Administração deve avaliar se os danos que resultam da sua atuação em função da preterição da legalidade são ou não justificados face à relevância dos propósitos que se pretende alcançar e dos interesses públicos que se visa proteger. 

De minha parte o estado de necessidade não é em si uma exceção ao princípio da legalidade, tanto pelo facto de ser a própria lei que o legitima, também porque mesmo em estado de necessidade continua a existir todo um ordenamento jurídico vigente em que o próprio estado de necessidade esta sujeito, pelo facto de que meso atuando em estado de necessidade a Administração é responsável pelos procedimentos que fizer e existe o direito de indemnização pelos danos sofridos. 

Se o estado de necessidade fosse uma verdadeira exceção ao princípio da legalidade iria colocar em causa o Estado de Direito em si, pois a Administração iria ter a discricionariedade para atuar de maneira arbitraria e usando o estado de necessidade para justificar toda e qualquer atuação, incumbindo assim num abuso de poder.


5- Exemplo de desrespeito do princípio da legalidade e inconstitucionalidade face ao estado de emergência

Por vezes acontece que durante o estado de necessidade a Administração enquanto tenta agir de forma a proteger determinados interesses públicos, acabar por desrespeitar interesses superiores que não deixam de existir, como é o exemplo da separação de poderes, extraído do artigo 2.º da CRP, e também dos seus artigos 111.º e 288.º, j), e tal como mencionado previamente o estado de necessidade não consagra uma exceção ao princípio da legalidade.

No seguimento faremos uma breve analise de um exemplo de extrapolação dos limites do estado de necessidade, que deu lugar a um processo no Tribunal Constitucional Acórdão n.º 350/2022.

Em resumo, após o período inicial de vigência do estado de emergência decretado pelo Presidente da Republica através do Decreto n.º 14-A/2020, de 18 de março , segue-se a declaração de situação de calamidade pelo Governo, inicialmente decretada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.o da Lei de Bases da Proteção Civil, Paralelamente, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-B/2020, de 22 de junho, veio definir regras especiais para a Área Metropolitana de Lisboa no âmbito da situação de calamidade declarada, em especial a imposição do encerramento de estabelecimentos comerciais e de serviços ás 20h na Área Metropolitana de Lisboa, onde também era decretado que a publicação da resolução constituía para todos os efeitos legais cominação suficiente, designadamente para o preenchimento do tipo de crime de desobediência.

A proprietária de um estabelecimento de restauração foi processada por violar essa mesma obrigação de encerramento, o tribunal Constitucional foi chamado a apreciar, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, um recurso interposto de uma decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste que havia recusado com o fundamento de constitucionalidade orgânica e formal a aplicação  dos pontos 4 e 5 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-B/2020, de 22 de junho.

O Tribunal Constitucional, em avaliação do caso chegou a conclusão de que Resolução n.º 45-B/2020, que criminalizava a desobediência durante a situação de calamidade era inconstitucional, padecendo de inconstitucionalidade orgânica, argumentado que o Governo não tem competência para legislar sobre a definição de crimes e que esta competência reservada á Assembleia da República tal como disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP.

6- Limite controlo do estado de necessidade:

O ponto anterior leva-nos aos limites e ao controlo do estado de necessidade, já foram neste texto abordados os requisitos necessários para que seja possível a invocação do estado de necessidade, contudo estes requisitos conte em si conceitos indeterminados que têm de ser preenchidos com juízos de valor. Faz parte do nosso ordenamento jurídico o poder discricionário da Administração necessário para que esta possa atuar, contudo o poder discricionário é balizado por normas, tal não será diferente quando falamos de estado de necessidade, também aqui existe um espaço onde a Administração pode exercer o seu poder discricionário, contudo, este espaço de decisão é passível de controlo  jurisdicional, assim o juiz poderá controlar a medida. Assim a possibilidade de aplicação do estado de necessidade estará sujeita ao controlo judicial, que poderá incorrer em diferentes aspetos tais como, a verificação dos pressupostos exigidos.

Igualmente a ponderação com base no princípio da proporcionalidades necessária para definir estes conceitos indeterminados presentes nos requisitos, também é passível de controlo judicial.

Outro limite que não pode ser ultrapassado pelo instituto do estado de necessidade prende-se com o princípio do procedimento equitativo que esta previsto no artigo 6.º da Carta Europeia Dos Direitos Humanos, este princípio determina que os cidadãos têm direito a um processo equitativo, este princípio vai englobar um conjunto de direitos, como o direito de audiência previa, direito a uma fundamentação de forma a garantir um julgamento justo. Tal como previamente abordado o estado de direito admite sim a preterição de normas procedimentais, contudo não pode colocar em causa o procedimento equitativo, pois estaria a colocar em casa todo o Estado de Direito Democrático.

7- Conclusão:

O estado de necessidade é uma ferramenta jurídica, importante para proteger os interesses públicos em situações de emergência extrema, contudo a sua aplicação não pode ser feita com o livre arbítrio da administração, mesmo em estado de necessidade continua a existir um ordenamento jurídico em vigor e a atuação da Administração é balizada por princípios e regras, e pelo respeito pelo Estado de Direito Democrático, as medidas utilizadas durante este período de tempo tem que ser proporcionais a ameaça que fez com que o instrumento do estado de necessidade fosse levantado.

É importante referir uma vez mais que não é pelo simples facto de a Administração agir em estado de necessidade que não pode ser responsabilizada por qualquer dano que cometer, pois se assim fosse não estaríamos sobre o instituto do estado de necessidade, mas sim sobre um regime sem legitimidade democrática, onde a Administração estaria a agir sem qualquer respeito pelo ordenamento jurídico.

Bibliografia: 

AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª edição

ALMEIDA, Francisco António de M. L. Ferreira., Direito Administrativo

CAETANO, Marcello., Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10ª edição, Almedina

OTERO, Paulo., Direito do Procedimento Administrativo, vol. I, Almedina, 2016


Legislação:

Código de Procedimento Administrativo 

Constituição da República Portuguesa 
Acórdão n.º 350/2022: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220350.html
 

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