A discricionariedade administrativa: antecâmara de administrativização da interpretação jurídica?

     I. A discricionariedade administrativa é, comummente, caracterizada como sendo “o espaço de autonomia ou de liberdade de decisão de que desfruta a administração numa situação concreta e individualizada” (Sérvulo Correia, apud Costa Gonçalves, ob. cit., pp. 211-212). 

A evolução da discricionariedade administrativa, pelo menos desde o século XIX, permite perceber a transição de uma denominação de “não vinculação”, quase extra legem, para uma margem de autonomia aplicativa das normas administrativas por parte da Administração no caso concreto que importa modelar à luz do interesse público, a qual é sempre exercida no respeito pelo princípio da legalidade (Freitas do Amaral, ob. cit.; Costa Gonçalves, ob. cit., pp. 205-206). A ciência da administração sublinha, aliás, a discricionariedade administrativa como decorrência de uma norma legal de competência (autorizativa) e não de uma pretensa “liberdade originária da Administração”.

 

II. A jurisprudência administrativa nacional, desde logo do Supremo Tribunal Administrativo, há muito que (ex vi, por exemplo, do Acórdão n.º 032889, de 3 de outubro de 1996) sustenta, precisamente, que: 

 

a)     A vinculação e a discricionariedade são duas formas típicas de que a lei se serve para modelar a atividade da Administração;

b)    Consoante os termos em que essa atividade administrativa está regulada pela lei, o titular desse poder de administrar pode ter mais ou menos liberdade, conforme o que se afigure mais ajustado à realização do interesse público protegido pela norma;

c)     A discricionariedade administrativa nunca é total, já que há sempre zonas ou elementos vinculados e definidos pela lei, como o sejam a competência, o titular do poder ou a finalidade a prosseguir.

 

A doutrina dominante (Costa Gonçalves; Freitas do Amaral; Vieira de Andrade ou Sérvulo Correia, apud Costa Gonçalves, ob. cit., pp. 206-208) não deixa, aliás, neste contexto, de insistir que o reconhecimento de uma autonomia pública da administração é um elemento essencial de uma compreensão adequada do princípio da separação e interdependência de poderes e que “anular a autonomia da administração, considerando a sua ação sempre definida por lei e sempre sindicável e substituível pelos tribunais, é incompatível com a estrutura e a dinâmica do sistema constitucional”.

 

III. Esta fundação da discricionariedade administrativa no princípio da legalidade é muito importante para compreendermos a correlação que podemos encontrar entre a interpretação jurídica de normas administrativas e a discricionariedade administrativa propriamente dita.

Com efeito, a determinação da existência do poder discricionário depende de uma operação de interpretação jurídica (Costa Gonçalves, ob. cit., p. 230). Trata-se, portanto, de uma decorrência da apreensão do sentido e do alcance da norma de competência discricionária administrativa, operando, assim, em momento logicamente posterior à interpretação propriamente dita.

As valorações e juízos de valor, a ponderação da “medida adequada” da ação administrativa em determinada situação concreta (princípio da adequação) em que importa satisfazer o interesse público, tudo isso ocorre porque a lei assim o consente e, para o captarmos, teremos de recorrer à interpretação jurídica, nos termos do artigo 9.º do Código Civil.

 

IV. Freitas do Amaral (ob cit.) ensina, na realidade, que a interpretação do ato administrativo é a operação jurídica que se traduz na determinação do sentido e do alcance juridicamente relevante de uma decisão administrativa e que os elementos dessa específica operação de interpretação jurídica são os seguintes: 

 

  1. O texto da decisão
  2. Os elementos constantes do procedimento administrativo
  3. O comportamento posterior da administração
  4. O tipo legal de ato
  5. As leis aplicáveis
  6. O interesse público a prosseguir 
  7. As praxes administrativas
  8. Os princípios gerais do direito administrativo

 

Se bem atentarmos, este elenco de elementos interpretativos do Direito Administrativo corporiza, afinal, à luz do artigo 9.º do Código Civil, uma concretização específica do elemento literal (ponto 1), do elemento lógico teleológico (pontos 4 e 6), do elemento sistemático (pontos 2, 5, 7 e 8) ou ainda o elemento histórico (ponto 3).

 

V. A discricionariedade é um poder orientado juridicamente, que tem de ser exercido segundo critérios e padrões jurídicos e que se desenvolve dentro de limites legais e jurídicos (cit. Costa Gonçalves, ob. cit.), os quais precisam de ser delimitados e apreendidos, precisamente, através da interpretação.

O agente administrativo tem de respeitar limites que resultam imediatamente da norma de competência, que lhe atribui o poder discricionário (Costa Gonçalves, ob. cit., p. 235), segundo limites que o próprio quadro normativo impõe ao sujeito administrativo. 

A discricionariedade não corresponde, portanto, a uma ideia de liberdade, nem de autonomia, enquanto expressão de arbítrio da Administração. Há sempre, aliás, uma racionalidade jurídica, uma convocação dos princípios jurídicos basilares (imparcialidade, igualdade, proporcionalidade, etc…) e da metodologia da ciência jurídica, desde logo a hermenêutica e, no caso do Direito Administrativo, a fundante orientação pelo interesse público. 

A decisão discricionária tem de ser uma decisão informada, proporcional e imparcial (Freitas do Amaral, Costa Gonçalves), sendo que a Administração não deve ter apenas o conhecimento certo de todos os elementos pertinentes; deve, sobretudo, saber interpretá-los e aplicá-los corretamente, sendo que a escolha administrativa deve basear-se numa ponderação adequada de todos os interesses relevantes no caso concreto. 

 

VI. Aqui chegados, importa, todavia, reconhecer que a específica margem de discricionariedade que a lei confere à ação administrativa pode favorecer um entendimento doutrinário e técnico-jurídico que venha a sustentar que, sendo a própria Administração competente, em muitos casos, para interpretar os seus próprios atos (através de atos interpretativos ou de aclaração de decisões de órgãos ou decisores administrativos), “a interpretação administrativa constitui um verdadeiro critério funcional da autonomia do direito administrativo” (Colaço Antunes, ob. cit., p. 18).

Na verdade, para esta abordagem “cético-prática” a interpretação jurídica seria, afinal, uma etapa de (re)configuração da discricionariedade administrativa, expandindo ou constrangendo a esfera de competência administrativa. 

Para Colaço Antunes, por exemplo, interpretar é decidir autonomamente ou, pelo menos, não apenas em relação à vontade hipotética do autor do texto interpretado. A Administração é, ela própria, um intérprete legítimo (artigos 112.º, nº5, e 199.º, al. c) da Constituição da República Portuguesa) e a interpretação jurídica constitui porventura o seu poder administrativo mais relevante. 

Nesta perspetiva, não seria possível distinguir em termos normativos a função interpretativa da função normativa-administrativa e, por conseguinte, a interpretação administrativa apresentar-se-ia como uma forma de supervisão administrativa das interpretações judiciais ou marcadas pelo exercício de poderes de autoridade. 

Atente-se, precisamente, no pensamento de Colaço Antunes (ob. cit., p. 22-23), a este respeito, que preconiza que “o direito administrativo deixou de ser apenas uma forma particular de produção do direito e de regulação das relações jurídicas para passar a constituir, através da interpretação administrativa, uma nova forma de pensar a hierarquia das normas” ou ainda que “a milagrosa sobrevivência e renovação do direito administrativo é explicável pelo relevante papel da interpretação administrativa, permitindo o equilíbrio da judicialização do direito administrativo com a crescente administrativização da interpretação jurídica, incluindo uma nova arrumação das fontes de direito com a adição da circular administrativa”.

 

VII. Discorda-se frontalmente deste entendimento que, combinando a discricionariedade administrativa com a proliferação de conceitos legais indeterminados no normativo administrativista e a central operatividade dos princípios jurídico-administrativos (plasmados na Lei Fundamental e no Código do Procedimento Administrativo), entende, afinal, que a interpretação jurídica seria uma forma de exercício do poder administrativo (discricionário) pela Administração.

Na verdade, acompanhamos a orientação doutrinária tradicional (citada supra) que segrega o momento primordial da interpretação jurídica na configuração confirmatória, ou não, do poder discricionário da Administração, da própria execução da vontade da Administração, através, precisamente, do poder discricionário administrativo, que, não o esqueçamos, é ele mesmo vinculado ex lege.

Parece-nos muito mais conforme com o enquadramento constitucional que norteia a nossa ordem jurídica – desde logo, à luz do princípio da separação de poderes – o entendimento de que a Administração não pode exercer os seus poderes auto-criando, circularmente, os termos interpretativos e pseudo-legitimadores da sua própria ação discricionária. Isso seria perigoso num Estado de Direito Democrático, lesivo dos direitos e garantias dos particulares e restritivo do controlo jurisdicional dessa mesma ação administrativa que seria, afinal, quasi-soberana e “arbitrária” na “sua discricionariedade” por via interpretativo-administrativa.

Acolhemos, neste sentido, o criticismo, por exemplo, de Santos Azevedo (ob. cit. , pp. 133-134) quanto a admitir-se uma desnecessária, quanto perigosa, convocação de “uma intencionalidade subjetiva” (do legislador ou, diríamos nós, também do sujeito administrativo), dilatando o exercício interpretativo bem para lá dos elementos plasmados no artigo 9.º do Código Civil e, portanto, não o esqueçamos, da legalidade que deve reger a ação administrativa, ainda e sobretudo se discricionária.

 

 

 

  

 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

 

Antunes, Luís Colaço. “O enigma da interpretação administrativa”, in Justiça Administrativa, n.º 152, outubro-dezembro 2022, pp. 18-30.

 

Amaral, Diogo Freitas. Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 2018, Almedina.

 

Azevedo, Pedro Santos. “Os casos Chevron e Mead – Análise e crítica analítica”, in e-Publica, vol. 9, n.º 1, abril 2022, pp. 104-138.

 

Gonçalves, Pedro Costa. Manual de Direito Administrativo, 2019, Almedina, pp. 200-294.

 

 

 

 

                                                                                                                                             Catarina Santos

Sub-turma 14, Turma B

nº 67638


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