Os limites absolutos da delegação de poderes públicos de autoridade em entidades particulares
Introdução ao tema e breve contextualização histórica
Olhando para a definição de Administração
no seu sentido orgânico ou subjetivo, podemos notar que esta é composta por
várias entidades públicas tais como o Estado, as Autarquias locais, as Regiões
Autónomas, assim como um variado número de institutos, empresas e associações
públicas.
Contudo, seria errado tirar deste facto a ilação que o Direito Administrativo regula apenas as entidades públicas. De facto, estão aqui incluídas também entidades privadas, que são consideradas na perspetiva de interesse geral, porque, apesar de terem sido criadas particularmente, sendo verdadeiras empresas e entidades privadas, atuam em funções ou com poderes públicos que tradicionalmente se associaram ao Estado, seja por concessão ou por delegação de poderes. E, contrariamente ao que se pode pensar, estas são, efetivamente, entidades importantes na vida quotidianas dos cidadãos. Dando exemplos práticos da vida quotidiana: se eu (ou qualquer outro) cidadão estacionar o seu carro na rua num dia de semana em Lisboa, a probabilidade de ter de pagar uma taxa de parquímetro à EMEL são elevadíssimas. Ou, por exemplo, se um determinado cidadão quiser ir de carro, de Lisboa ao Porto, em primeiro lugar, para garantir que o carro pode andar terá que ir a um centro de inspeções para certificar que este pode andar, e em segundo lugar, se decidir ir pela autoestrada, pagará uma quantia monetária de portagem à Brisa. Ou, por fim, se esse mesmo cidadão for viajar e decidir ir para um determinado país de avião poderá ser revistado por um segurança privado no aeroporto (apesar de esta ser um questão mais complexa, analisada mais para a frente, ver ponto 4.1.1).
Parece-me correto afirmar, então, que há
uma clara implementação de distribuição de tarefas e de poderes públicos tanto pelas entidades públicas como privadas. Tal
reflete uma clara tendência histórica de emagrecimento do Estado, que, em vez
de atuar diretamente num sentido de querer controlar todos os que são tidos
como poderes tipicamente estaduais, prefere utilizar atores privados com o
objetivo de, dentro dos máximos possíveis, utilizar a sua capacidade privada
para satisfazer os interesses e objetivos públicos.
Este crescimento de entidades privadas com
poderes públicos tem origem em vários fatores,
contando-se sucintamente estes, entre outros: (i) a impossibilidade da
administração pública abranger e conseguir cumprir todas as tarefas necessárias
para a prossecução e efetivação dos objetivos públicos; (ii) uma redistribuição
dos papeis entre Estado e sociedade com inúmeras ideologias politicas e económicas a sugerir a redução em tamanho do Estado e (iii) a necessidade que
esses objetivos públicos sejam cumpridos de forma melhor e mais barata.
Note-se, no entanto, que este não é um expediente novo ou exclusivo do nosso tempo. Apesar de ter assumido formas verdadeiramente diferentes das atuais, a entrega do exercício de funções públicas a privados e particulares faz-se desde o tempo dos romanos. De facto, o Direito Romano reconheceu esta figura utilizando-a, por exemplo, na cobrança de impostos. Esta era delegada a particulares, os publicanni. Estes eram pessoas ou sociedades particulares que asseguravam uma cobrança de impostos pontual e certa num território tão vasto e diversificado como o do Império.
Avançando para um
tempo histórico posterior esta delegação fez-se também, por exemplo, em
Portugal na Idade Medieval com a entrega de poderes públicos aos proprietários
de terras através dos chamados coutos, honras e beatarias e também na Idade Moderna, com a
entrega de poderes de administração das colónia recém-conquistadas por diversos Estados
Europeus a particulares.
A diferença destes tempos históricos para
o tempo atual resulta de uma análise da natureza das tarefas assumidas: enquanto nos tempos históricos referidos, numa via mais clássica, os privados eram vistos como participantes na execução de tarefas estaduais
periféricas; hoje em dia assumem-se como detentores da responsabilidade de
execução de tarefas nucleares do Estado como, por exemplo, a manutenção da ordem
e da tranquilidade pública e o controlo das condições de segurança técnica.
Afigura-se assim, por tudo isto, perceber
um pouco o que são estas autoridades particulares com poderes públicos e, para além
disto, quais os limites absolutos que se
lhes impõem.
Sendo o título deste post “ Os limites absolutos da delegação de poderes públicos de autoridade em entidades particulares” tentarei, ao longo do trabalho, dissecá-lo e compreender todos os conceitos que o compõem, respondendo às quatro seguintes perguntas:
1. O que são poderes públicos de autoridade?
2. O que são entidades particulares com poderes públicos e como se distinguem de entidades administrativas privadas?
3. Em que consiste uma delegação de poderes públicos de autoridade para uma entidade particular?
4. Devem existir delegações de poderes de autoridade e, se sim, quais são os limites absolutos a esta delegação?
1. O que são poderes públicos de autoridade?
Para responder à pergunta importa, em primeiro lugar, entender um pouco o que significa o termo poder. Este já é, só por si, um dos mais difíceis e ambíguos termos da ciência jurídica, e atrevo-me a dizer que se poderia fazer um trabalho exclusivamente a investigar e aprofundá-lo. Não havendo, no entanto, oportunidade de o fazer, o poder pode ter (sucintamente) alguns sentidos entre eles:
(i) o desenvolvimento de atividades livres, admitidas e reconhecidas pela ordem jurídica
(ii) a faculdade de originar uma alteração no mundo jurídico
(iii) o facto de o sujeito estar investido, de uma prerrogativa que, para proteger interesses alheios, lhe permita agir sobre a esfera jurídica de um terceiro
(iv) posição jurídica subjetiva, ligada à capacidade de um sujeito produzir alterações na esfera jurídica de um terceiro, quer este concorde quer não.
Se definir poder já não é fácil, afigura-se igualmente difícil, por força da razão, definir o que são poderes públicos.
Subjetivamente, este termo pode servir para designar entidades ou organismos que estão na esfera do Estado ou Administração pública, quando se diz que “os cidadãos podem apresentar queixas por ações ou omissões dos poderes públicos” art.23º/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Em sentido material pode ter um significado equivalente a toda a atividade exercida pelo Estado, por outra entidade administrativa privada ou entidade privada com poderes públicos, indicando cumprimento das tarefas públicas e o domínio do Estado (latu sensu). Por outro lado pode ser também definido como os poderes de agir conferidos por lei a uma entidade para prosseguir fins públicos.
No entanto a
doutrina tem vindo a autonomizar, dentro dos poderes públicos, os poderes
públicos de autoridade. Como defende o
professor Freitas do Amaral, estes autonomizam-se por serem uma espécie de
poderes públicos que se particularizam pela qualificação ou nota autoritária.
Então agora respondidas brevemente as questões
anteriores, impõe-se responder à pergunta originária “ o que são poderes
públicos de autoridade”?
Cabe-me referir brevemente, antes de responder à pergunta que há duas principais posições no que toca ao que é a autoridade: a que vê autoridade como algo iminente à Administração estando presente em todos os seus poderes e competências, e a que vê autoridade como a capacidade do poder publico impor o sacrifício de posições jurídicas dos cidadãos. No entanto, para englobar o conceito de autoridade no conceito de poderes públicos de autoridade o professor Diogo Costa Gonçalves afirma que esta “é menos no que propõe a primeira doutrina e mais do que define a segunda”.
Segundo este mesmo autor o poder público de autoridade é definido
como “ o poder abstracto - estabelecido por uma norma de direito público -
conferido a um sujeito para, por acto unilateral praticado no desempenho da
função administrativa, deitar regras jurídicas, provocar a produção de efeitos
com repercussão imediata na esfera jurídica de terceiros, produzir declarações
às quais a ordem jurídica reconhece uma força especial ou ainda empregar meios
de coação sobre pessoas e coisas”[1].
Ou seja, não querendo tentar sequer dar uma melhor definição do que o professor Costa Gonçalves (até porque não me seria possível) tentarei por esta definição por palavras minhas de forma a melhor compreendê-la e percebe-la. Assim, poderes públicos de autoridade são poderes que um sujeito (seja entidade pública ou privada) é conferido através de uma norma de direito público para poder editar regras de conduta a observar obrigatoriamente e ter a faculdade de agir produzindo efeitos na esfera de terceiros com ou sem consentimento, podendo produzir declarações que têm uma força especial ou empregar meios coercivos sobre outras pessoas ou coisas. Por exemplo, a EMEL têm poderes públicos de autoridade na medida em que pode rebocar e bloquear carros (propriedade alheia), interferindo assim gravemente na esfera patrimonial dos cidadãos afetados pelas referidas medidas.
2. O que são entidades particulares com poderes públicos e como se distinguem de entidades administrativas privadas?
Apesar de até então, se ter utilizado a expressão entidades privadas em sentido lato abrangendo-se os dois tipos explicados de seguida sem diferenciação, a verdade é que estas se podem distinguir entre entidades particulares e entidades administrativas privadas. Tendo em conta o objeto do presente trabalho, esta distinção denota-se particularmente importante e útil, visto que os limites impostos a umas e outras são significativamente diferentes, interessando-me para este post apenas a delegação a entidades particulares. Importa, então, percebe-las e distingui-las.
Em primeiro lugar, particulares ou entidades
particulares são atores verdadeiramente privados, que quer na sua forma quer
no seu substrato, estando encarregues de explorar, gerir ou desempenhar
determinadas tarefas administrativas que se assumem como titulares de direitos
fundamentais. [2]
São sujeitos sem qualquer influência
dominante do Estado ou de outra pessoa coletiva pública, verdadeiramente
privados, distinguindo-se em dois tipos:
(i) Podem ser pessoas singulares que não se encontrem ligadas ou que não façam parte do estado de qualquer forma e que, quer por trabalharem como trabalhadores dependentes por conta de outrem uma vez que eles mesmos são os destinatários da delegação apesar de trabalharem para outrem (exº de portageiros de empresas concessionárias de autoestradas) quer por serem trabalhadores por conta independente (médicos, veterinários ou notários independentes).
(ii) Por outro lado, podem também ser pessoas coletivas criadas por particulares no âmbito da sua autonomia privada e no exercício dos seus direitos, segundo os formatos e exigências típicas do direito civil. [3] Incluem-se, contudo, aqui também entidades inicialmente criadas pelo Estado que, por um processo de privatização foram tornadas em privadas, assim como entidades privadas criadas por lei (exº antiga Câmara dos revisores Oficiais de Contas). Torna-se no entanto, importante perceber também que, o facto de uma empresa ou entidade ter substracto misto, ou seja, envolver participação pública, não proíbe à sua classificação como entidade particular - desde que essa parte pública não tenha uma participação dominante.
Por outro lado existem também as entidades administrativas privadas.
Estas podem definir-se como organismos que, apesar de terem personalidade de
direito privado, são dominadas ou pelo Estado, ou por uma ou por várias Entidades
públicas, sob sua influência dominante, podendo ser associações,
cooperativas, sociedades ou fundações públicas de direito privado.
Ou seja, o critério verdadeiramente importante para caracterizar e distinguir estes dois tipos de entidades é o da “influência dominante do Estado”.
Se, direta ou indiretamente tiver influencia
do Estado ou de uma pessoa coletiva pública será uma entidade administrativa
privada, se for uma entidade privada sem influencia dominante do Estado será uma entidades particular com poderes públicos de autoridade.
Nota-se por fim importante distinguir entre entidades privadas (latu sensu) com poderes públicos e entidades privadas colaboradoras com o Estado. Enquanto as primeiras, por delegação, assumem uma atividade primariamente estadual, tentando cumprir e satisfazer interesses e objetivos públicos, as segundas (sendo entidades verdadeiramente particulares) limitam-se a colaborar com a administração, prosseguindo interesses altruísticos com relevância social e com interesse público, mas não exercendo a função administrativa.
São exemplo de entidades que fazem um exercício privado de colaboração com o Estado as Instituições Particulares de Solidariedade Social, que são definidas como “(…) instituições particulares de solidariedade social, adiante designadas apenas por instituições, as pessoas coletivas, sem finalidade lucrativa, constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público.” Art. 1º/1 do Decreto-Lei n.º 172-A/2014.
3. Em que consiste uma delegação de poderes públicos para uma entidade particular?
Para que uma entidade particular obtenha poderes públicos de autoridade terá, basicamente, de os obter de algum lado. Ou seja, tem de haver uma outorga de poderes públicos de autoridade do Estado ou entidade pública a uma entidade privada . Esta outorga, por sua vez, resulta de um ato organizativo que se pode designar como “delegação de poderes públicos” como defendem os professores Pedro Costa Gonçalves (PCG) e Paulo Otero. [4]
Os tópicos caracterizadores da concessão - ser um ato jurídico firmado entre a Administração Pública e um particular, e em que o particular seja uma pessoa física ou jurídica para que possa explorar um serviço público - não parecem afastar a sua aplicação para o trabalho referido.
No entanto, a verdade é que se torna muito fácil a confusão desta palavra com a figura dos concessionários e empresas concessionarias de atividades económicas e culturais, em que não existe a concessão de atividades administrativas. São exemplos destas concessões estaduais puramente económicas e culturais/sociais a privados a concessão às esplanadas dos cafés e dos bares, a concessão feita aos bares de praia e ao concessionários dos chapéus de sol nas praias, a concessão do espaços públicos a várias entidades particulares como, por exemplo, o Mercado de Campo de Ourique em Lisboa.
Ora, sendo a outorga de poderes públicos de autoridade a entidades privadas referente unicamente ao exercício de competências puramente administrativas, tendo a concordar com o professor PCG quando este afirma que delegação é um conceito mais adequado para representar a especificidade da outorga do exercício de poderes públicos a entidades privadas do que a "concessão de poderes públicos".
Assim, o conceito de concessão fica remetido para a entrega do exercício de atividades publicas económicas, sociais e culturais a entidades em regra privadas.
Note-se que, porém, as observações anteriores não são imperativas ou exigências teóricas mas mais uma escolha pessoal[5], com a qual eu tendo a concordar.
Assim, o conceito delegação parece-me efetivamente o mais adequado para nomenclar esta transferência de exercício de
poderes de uma entidade pública para uma entidade privada que, não obstante a delegação, se mantêm na titularidade da primeira .
No entanto, a referência a delegação não é igual à de "delegação" presente no art. 35 e ss do Código de Procedimento Administrativo (CPA). Pode-se então considerar-se esta como uma delegação atípica e autónoma dado que não cumpre os requisitos e não se enquadra nos tipos de delegação definidas no CPA.
4. Devem existir delegações de poderes de autoridade e, se sim, quais são os limites absolutos a esta delegação?
Apesar de a
questão de saber se as delegações são ou não possíveis ser menos importante no
debate público e administrativo do que os debate e na definição de quais serão
esses limites, pareceu-me, não obstante o tema que pretendo aprofundar ser mais
o segundo, um tema importante de referenciar.
Tratando o primeiro tema referenciado em cima
de forma sumaria: existem assim três principais tendências de abordagem sobre a
legitimidade da delegação.
Em primeiro lugar,
um discurso de proibição, principalmente de doutrinas minoritárias da Alemanha
e dos Estados Unidos que defende que há absolutas proibições de delegação de
poderes públicos pelo facto de haver silêncio constitucional sobre o assunto
(Alemanha) afirmando estes autores que a figura em questão é um perigo para os
princípios da democracia parlamentar, chegando a referir a esta figura como um
possível iniciar de caminho para um “neo-feudalismo” e como algo que infringe o
principio democrático porque o poder passa a ser exercido por pessoas que não
foram escolhidas pelo povo e que, por isso não têm legitimidade para o cumprir.
Em segundo lugar,
um discurso liberal que, na sua fação mais radical protagonizada por Jody
Freeman não só a delegação é permitida como se defende a inexistência de
quaisquer limites específicos de delegação de poderes e que não é preciso que a
constituição as autorize expressamente para que possam existir.
Em terceiro lugar,
existe ainda dois discursos intermédios entre as duas posições, que consideram
possível a delegação mas de forma diferente. Por um lado, uma posição que
defende que é possível a delegação mas que esta tem de respeitar e exigir a
observância de certos limites e condições constitucionais da aceitação de cada
delegação de funções e poderes públicos.
Deste modo, a delegação, apesar de ser viável só pode ser prevista ou feita por
lei, e ter o sujeito da delegação como sujeito de fiscalização. Por outro lado
existe a posição que defende a delegação como possível mas como restrição a uma
garantia institucional, defendida em Portugal pelo professor Paulo Otero. Esta ideia surge
defendendo que, apesar de possível a delegação configura-se como uma exceção no
sistema administrativo, só se tornando viável se baseada num fundamento
objetivo e forçoso, baseada num motivo legitimo mostrando-se que o particular
se encontra em melhores condições para a exercer do que as entidades públicas.
Segundo esta tese quanto mais agressiva for esta restrição da garantia
institucional prevista pelo artigo 111/2 maiores exigências quanto à
demonstração das vantagens e benefícios correntes terão que se verificar.
A CRP ao prever,
no seu artigo 267/6 que “ As entidades privadas que exerçam poderes públicos
podem ser sujeitas, nos termos da lei, a fiscalização administrativa.” está a
reconhecer expressamente a possibilidade de exercício de poderes públicos por
entidades privadas ainda que de forma indireta. Efetivamente, apesar de não
haver, à semelhança do sistema suíço em que há uma autorização conferida para
se confiar a execução de poderes públicos em particulares, fica claro que, ao
regular a figura sub judice, a CRP a acaba por aceitá-la e legitimá-la:
com certeza que se a delegação de poderes não fosse permitida a Constituição
não teria um assunto a referir-se diretamente à sua fiscalização
administrativa.
No entanto, relembrando a diferença entre poderes públicos e podres públicos de autoridade, a referir-se a poderes públicos não se refere a poderes públicos de autoridade, e é por isto que o professor PCG [6] afirma que a Constituição da República Portuguesa não proíbe nem autoriza especificamente a delegação de poderes públicos de autoridade em entidades particulares. Terá então, que se deduzir, através da CRP os) que vinculam todo este processo, e são precisamente os limites absolutos, ou seja, os limites que não podem de algum modo ser delegados em particulares, os que que me proponho a apresentar e explicar de seguida. Efetivamente estes dividem-se em dois: limites absolutos de caracter objetivo e limites absolutos de caracter subjetivo.
4.1. Limites absolutos de caracter objetivo
Estes limites referem-se expressamente a certos poderes públicos de autoridade sobre os quais cai uma total proibição de delegação a entidades privadas, numa perspetiva jurídico-constitucional.
Em primeiro lugar, pelo já referido artigo 111/2 da CRP há um conjunto de competências administrativas que, por serem estabelecidas pela própria CRP para certas entidades e órgãos públicos, não podem ser delegadas a particulares. São exemplos disto: certas competências da Alta Autoridade para a Comunicação Social (art.39º da CRP); competências das autarquias locais para, através de instrumentos de planeamento, definir quais as regras de ocupação e uso dos solos urbanos (art. 65/4) bem como as funções administrativas do governo (art. 199). Acrescentando a isto, são também insuscetíveis de delegação os poderes a alta administração uma vez que se entende que a promoção, direção, coordenação e enquadramento das ações de Administração Pública deve encontrar-se exclusivamente confiadas a órgãos do vértice da administração pública.
Em segundo lugar,
há certos poderes que, pela sua natureza não podem ser delegados. Entre eles
está o poder de uso da força, em que se entende que os poderes de coação física
sobre os cidadãos são poderes englobados no monopólio estadual da força, sendo este
um principio implícito do principio de Estado de Direito. Ora de facto, sendo
uma das principais incumbências do Estado a proteção dos direitos fundamentais
dos cidadãos, por vezes a força contra terceiros torna-se indispensável nessa
proteção. Como refere o professor PCG este monopólio estatual de força é tanto
um monopólio de titularidade como de execução. Tal deve-se ao facto de a
possível delegação, ao por nas mãos de um particular um poder genérico e
indeterminado de emprego da força poderia por em causa os direitos e liberdades
dos cidadãos. Efetivamente, pensando por exemplo na questão da delegação da
questão global das prisões, ou seja, basicamente, de haverem prisões privadas:
não seria legitimo afirmar que há aqui um claro perigo, no sentido de as
entidades privadas serem entidades mais preocupadas com a maximização do lucro
e não com a reabilitação e reinserção dos presos? Como defende uma enorme e
maioritária doutrina europeia parece-me claramente que sim. De facto, uma
entidade privada que gira total e completamente uma prisão por delegação de
poderes de autoridade fará tudo para maximizar o seu lucro, ou seja: terá
interesse em ter o maior número de pessoas presas possível, o que é excessiva e
perigosamente perigoso porque há um claro e manifesto interesse em que se faça legislação para
agravar desnecessariamente as penas e, para além disto, haverá um enorme
beneficio para se cortar nos custos, contratando mão de obra mais barata e
desqualificada para guarda dos prisioneiros contribuindo para uma degradação
evidente do sistema prisional.
4.1.1. Possíveis exceções a esta proibição
Pode então perguntar-se: mas não há exceções a esta proibição? Por exemplo quando vou apanhar um voo ou entrar num recinto desportivo e sou revistado por pessoal de segurança privada não há aí uma delegação de poderes de autoridade? E quando vou a um bar ou discoteca e se encontram seguranças de uma empresa privada não há também aí uma delegação? Respondendo sucintamente: quanto à primeira questão há sim, uma exceção a esta proibição, justificada pelo facto do caracter predeterminado, rotineiro e estandardizado destas medidas não serem perigosas (salvo rebuscadas exceções) perigosas para os cidadãos.
Quanto à segunda questão, muito simplificadamente, apesar do Estado regularizar as empresas de segurança privada não há aqui uma verdadeira delegação já que, nestes casos há, por sede contractual e da autonomia privada, um contracto em que os funcionários de uma determinada empresa de segurança privada empregam a força para proteger o património da empresa contratante, a vida e a integridade física e moral de terceiros, neste caso pessoas que se encontrarem perto ou clientes da empresa contratante, tudo isto em troca de uma contraprestação monetária. Mas, neste caso o fundamento de uso da força tem a sua base no direito privado, nomeadamente na legítima defesa de terceiros (art. 337 do código civil) na ação direta (art. 336 CC) ou no Estado de necessidade (art. 339 CC).
4.2. Limites absolutos de caracter subjetivo
Estes são, agora, casos em que se verifica uma impossibilidade da delegação de poderes de autoridade em particulares específicos, em via da condição em que se encontram.
A primeira situação é o de delegação a particulares de poderes públicos sem funções públicas. Ou seja, poderes públicos de autoridade não podem ser atuados em nome da realização privados: seria uma inversão da natureza intrínseca destes poderes, que é a de prosseguir fins públicos. Deste modo, não podem ser delegados poderes públicos de autoridade a empresas que seja destituída de tarefas públicas, ou seja, que não se enquadre no cenário de um exercício privado de funções públicas e não atuando como membro na administração.
A segunda situação é a de a delegação para certos particulares que não oferecem garantias de uma
atuação desinteressada no exercício de poderes públicos de autoridade.
Efetivamente há casos em que existe um perigo real e genuíno para os direitos
essenciais dos cidadãos quando há uma delegação a uma certa entidade que tem
interesses próprios em beneficiar de um determinado comportamento livre por
terceiros perante os quais têm uma posição de autoridade. Como já foi referido
pelo Tribunal Constitucional em algumas passagens, pode ser dado como exemplo
de uma situação desta a passagem de carteiras profissionais pelos sindicatos,
uma vez que, tendo os sindicatos esta força e autoridade, estes podem fazerem
usar-se delas para forçarem a sindicalização dos trabalhadores - recusando
carteira a trabalhadores que não estejam sindicalizados.
Em terceiro lugar
aponte-se também a proibição de delegação de poderes públicos que não tenham
caracter predominantemente técnico a estrangeiros, enquanto particulares (art.
15/2 CRP). Parece-me também viável de afirmar que será um requisito de
delegação em funções de caracter não predominantemente técnico o facto dos
dirigentes não terem cidadania estrangeira, sendo apenas permitida a
portuguesa.
Por fim, é ainda proibida a delegação imposta a associações privadas. Efetivamente, por ir em sentido contrário ao livre exercício de uma profissão (art. 47º) ou com o desempenho de uma atividade económica privada (art. 61º da CRP) a delegação de poderes públicos legalmente imposta parece-me, concordando o professor PCG não poder ser aplicável a todas as entidades privadas independentemente da sua autorização. Tal deve-se ao facto de estas serem instruídas de prosseguir livremente determinados fins e objetivos sem que possa haver intervenção das autoridades públicas”. Neste caso, parece-me correto afirmar que uma intervenção da natureza referida apenas é viável quando a associação privada assim o permitir.
Trabalho de Tomás
Castello Branco
2º ano subturma 14
Nº aluno: 67841
Ano letivo de 2023/24
Bibliografia
Amaral,
P. F. (2015). Curso de Direito Administrativo. Almedina .
Gonçalves, P. C. (2005). Entidades Privadas com
Poderes Públicos. (Tese de Doutoramento) Almedina.
Gonçalves, P. C. (2019). Manual de Direito
Administrativo (Vol. I ). Almedina.
Otero, P. (1987). A competência delegada no
Direito Administrativo Português. AAFDL.
Sérvulo Correia, J., & Paes Marques, F. (2021). Noções de Direito Administrativo (Vol. I). Almedina.
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