O Estado de necessidade administrativa | Beatriz Reis Sacramento

Introdução:
    A atuação da Administração Pública é estritamente conduzida pela legalidade. Contudo, cabe saber-se se em estado de emergência, de calamidade ou em situações de risco, a Administração continua estritamente vinculada a este princípio. O princípio do Estado de necessidade administrativa consagra uma análise complexa que desafia o princípio da legalidade. 
    Esta exposição tem o propósito de responder a esta questão, com base na crítica feita pelo Professor Vasco Pereira da Silva ao art. 3.º/2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e na doutrina do Professor Paulo Otero e Professor Freitas do Amaral. Pretende-se compreender os desafios da aplicação desta norma na administração portuguesa.  
Enquadramento geral:
    O princípio do estado de necessidade administrativa, contém uma base consuetudinária, pois se remontarmos ao Direito Romano veremos que este já consagrava os seguintes ideais: necessitas non habet legem e quod non est licitum lege, necessitas facit licitum, isto é, a necessidade não tem lei e a necessidade torna lícito o que de outro modo seria ilícito.
    O princípio do estado de necessidade administrativa, encontra-se consagrado no Código do Procedimento Administrativo - artigo 3º/2. Deste princípio decorre um sentido de orientação do agir da Administração Pública perante uma circunstância excecional, e inesperada, que coloque em perigo iminente pessoas, bens ou instituições. Isto é, perante uma situação em que a Administração necessite de atuar com urgência, com o objetivo de salvaguardar interesses públicos imprescindíveis, admite-se a possibilidade de a própria Administração recorrer àquilo a que muitos autores designam de “legalidade excecional ou extraordinária”.  
O Princípio do estado de necessidade administrativa: 
    A administração pública está sujeita a um conjunto de princípios que regem a atividade administrativa, onde se insere o princípio da legalidade, consagrado no art. 3.º do CPA e no art. 266.º/2 da CRP. A partir desta contextualização, é ainda possível a distinção de duas modalidades do princípio da legalidade, a preferência de lei e a reserva de lei.
    Não obstante a este princípio, uma parte da doutrina entende que é possível encontrar exceções ao princípio da legalidade. Uma dessas exceções é o princípio do estado de necessidade administrativa. 
    O Professor Freitas do Amaral considera-o, na verdade, não uma exceção, mas sim uma “legalidade excecional”. Quanto ao Professor Paulo Otero, considera este princípio uma “legalidade excecional ou alternativa”. 
    Nem sempre o desenvolvimento da sociedade ou das instituições públicas ocorre em condições ou circunstâncias normais, apesar de ser nestas que assenta a pressuposição factual aplicativa da legalidade: há, todavia, circunstâncias excecionais e imprevisíveis, passiveis de suscitar perigos, ameaças ou lesões a pessoas, bens ou instituições e que requerem a necessidade e a urgência das medidas administrativas tendentes a defender, conservar ou fazer cessar tais ameaças, sendo para tal indispensável usar uma legalidade excecional ou extraordinária – aqui se situa o estado de necessidade administrativa. 
    O Professor Paulo Otero refere-se a este princípio como uma expressão e um princípio geral de Direito consagrado no Direito Administrativo.
    Assenta nos seguintes pressupostos cumulativos: 
(A)  A existência de circunstâncias de facto extraordinárias, devendo entender-se que a vontade do decisor administrativo não concorreu para a sua produção; 
(B)  Essas circunstâncias extraordinárias envolvem uma ameaça séria ou um efetivo grau de perigo ou risco de dano a bens ou interesses essenciais da coletividade – fale-se agora, à luz da jurisprudência, em “perigo iminente e atual”; 
(C)  A essencialidade dos bens ou interesses em causa impõe a indispensabilidade e urgência de uma atuação administrativa; 
(D)  Essa intervenção administrativa só pode fazer-se através da preterição das normas habitualmente reguladoras da Administração Pública. 
    A falta de qualquer um dos pressupostos mencionados determina a ausência de fundamento legal justificativo do recurso à figura do Estado de necessidade administrativa e a consequente invalidade da sua invocação ou utilização como habilitação de um agir administrativo contra legem. 

    O estado de necessidade administrativa parte de uma determinada e concreta factualidade, avaliada na sua relevância habilitante pela própria administração pública, num juízo ponderativo entre a salvaguarda da essencialidade dos bens e interesses ameaçados ou já lesados e, perante a impossibilidade de remover ou neutralizar esse perigo ou lesão através dos meios de legalidade normal ou ordinária. Decide-se sacrificar o mal menor, preterindo ou afastando a aplicação das normas jurídico-positivas habitualmente reguladoras do agir administrativo, num propósito de salvaguardar esses bens ou interesses públicos essenciais – o estado de necessidade envolve, por isso, uma colisão de interesses, levando a que, num intuito de evitar o sacrifício de um bem mais importante, acabe por se sacrificar outro bem de menor valor.
 
    O Professor Vasco Pereira da Silva questiona a existência deste artigo. De acordo com o Professor, definir que os atos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas no presente código são válidos, é permitir que, nesta situação, não se obedeça ao que está disposto na lei ou no código. Contudo, é exatamente nesse pressuposto que o estado de necessidade se baseia. Legitima-se que se adote medidas e providências que, num cenário de circunstâncias ordinárias, seriam ilegais, existindo aqui, uma permissão para encontrar no ordenamento jurídico, uma norma habilitante – ainda tem o seu fundamento integrado na juridicidade.  Neste sentido, essas condutas administrativas não podem considerar-se ilegais.
    O professor considera que o que o legislador escreveu neste artigo é inadmissível, especialmente por se consagrar numa norma que se intitula princípio da legalidade. Seguido de que, se foi realmente isto que o legislador pretendeu dizer, este artigo é manifestamente inconstitucional, por comportar uma autorização para violar a lei. Contudo, não se trata de uma autorização para violar a lei. A legalidade jurídico-positiva que normalmente rege a Administração é, na verdade, substituída, desde que se verifiquem os pressupostos do estado de necessidade administrativa – trata-se de uma legalidade excecional. Envolve uma cláusula substitutiva do padrão de conformidade normativa da atuação da Administração Pública, habilitando que, por efeito da derrogação ou preterição das normas habitualmente reguladoras da função administrativa, se coloque no seu lugar uma legalidade alternativa. 
    Neste sentido, o Professor Freitas do Amaral, exemplifica que, perante circunstâncias excecionais, em que estejam em causa situações de necessidade pública, como, por exemplo, guerra, estado de sítio, ou uma grave calamidade natural, a Administração Pública fica dispensada de seguir o processo legal estabelecido para as circunstâncias normais, mesmo que isso implique que se tenha de sacrificar direitos e interesses dos particulares.
    Assim, funciona como uma legalidade excecional e não como uma violação do princípio da legalidade, como o Professor Vasco Pereira da Silva dispõe. É o próprio art. 3.º/2 do CPA que vem legitimar essa atuação administrativa.
 
    O Professor Vasco Pereira da Silva conclui a sua crítica relacionando este princípio com o art. 8.º do CPA - consagra o princípio da razoabilidade, embora ligado à justiça, correspondente à ideia do senso comum de que o legislador nunca diz asneiras e que, quando o faz, elas não podem valer, ou seja, são ilegais. O Professor finaliza com a ideia de que o legislador quis testar os critérios deste artigo e que aquilo que diz no art. 3.º/2 é de tal maneira desrazoável, que não se pode considerar legal – consagrou-se a razoabilidade e o legislador fez um artigo totalmente desrazoável para provar que, efetivamente, quando diz “disparates” e quando se engana, não podemos considerar o que diz.
 
    Contudo, este princípio é pautado por uma avaliação acerca dos danos resultantes da preterição da legalidade ordinária, relativamente à relevância dos propósitos que se pretendem alcançar com a atuação administrativa contra legem – ou seja, se os bens e interesses públicos ameaçados ou já lesados que se visam acautelar podem ser salvaguardados através de meios que não envolvam o afastar  de normas integrantes da legalidade normal – só assim se poderá falar em atuação administrativa contra legem. No caso de se verificar que os meios existentes no âmbito da legalidade se mostram suficientes para remover ou neutralizar a ameaça ou o perigo, inexiste pressuposto aplicativo do estado de necessidade administrativa e do inerente efeito habilitante de derrogação da normatividade habitual – a sua utilização será, em tal cenário, ilegal, por falta do respetivo pressuposto. 
    Assim, no estado de necessidade administrativa deverá ser feito um juízo de prognose por parte da Administração Pública que envolva uma ponderação pautada pelos postulados de adequação e necessidade entre meios e fins, de forma a evitar que diante de circunstâncias graves de calamidade, a Administração possa atuar de forma totalmente arbitrária. 
 
     Ora, a meu ver, e com base nesta discussão doutrinária, o princípio do estado de necessidade administrativa não comporta necessariamente uma violação ao princípio da legalidade. Considero que se trata, na verdade, de uma “legalidade de exceção”. Ou seja, perante circunstâncias extraordinárias, estando preenchidos os pressupostos de aplicação, é lícito que a Administração viole alguns interesses. Contudo, essa violação só deverá ser admitida no sentido de tutelar outros interesses e direitos cuja preterição da sua defesa manifestar-se-ia de forma mais danosa. 
    Podemos extrair que, se este artigo fosse realmente inconstitucional, assim como o Professor Vasco Pereira da Silva defende, a administração estaria sujeita a uma subordinação estrita da lei, o que poderia causar danos intoleráveis – a não utilização da norma como está formalizada em prol da prevenção de um mal maior em termos práticos. 
    É importante salientar que o estado de necessidade administrativa possui um conteúdo moldável a cada caso. Quando se privilegia certo direito em detrimento de outro, esse não perde a sua eficácia – não há qualquer desvalorização jurídica desse direito. Neste sentido, é importante não esquecer que, para além do princípio da legalidade, os outros princípios estão também sempre agregados à atuação administrativa. O princípio da proporcionalidade tem aqui um papel importante, por limitar os atos praticados pela administração em estado de necessidade apenas aos que os fins não pudessem ser alcançados de outra forma – em menor proporção e menos rigorosos – se assim não for, a operação deixa de estar coberta pelo estado de necessidade e passa a ser inválida. Também o princípio da igualdade implica ao administrador provar que qualquer facto ocorrido que implique um tratamento desigual, não poderia ter sido evitado; e os princípios da justiça, imparcialidade, e da prossecução do interesse público têm grande relevância na condução do agir administrativo em estado de necessidade. 
    Esta sujeição garante que, diante de uma situação de estado de necessidade, em que Administração ao tentar proteger determinados interesses públicos, não acabe por desrespeitar direitos fundamentais, como se o princípio do estado de necessidade administrativa realmente consagrasse a violação do princípio da legalidade. 


 
Beatriz Reis Sacramento
N.º de aluno: 67903
Turma B, subturma 14

Bibliografia: 

  • FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo vol. II, 4ª edição
  • OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo I, Almedina, 2016
  • SILVA, Vasco Pereira da. Aulas Teóricas da turma B, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2024.
Legislação: 
  • Código do Procedimento Administrativo (CPA); 
  • Constituição da República Portuguesa (CRP);


 


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