Correção de um exame: ato administrativo discricionário?
Correção de um exame:
ato administrativo discricionário?
Introdução
Regime Jurídico da Faculdade
Para além de ser uma pessoa coletiva pública, goza de autonomia:
· Art.76º/2, Constituição da República Portuguesa (adiante apenas CRP) – consagra a autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira.
· Art.11º/1, RJIES – remete para autonomia estatutária, pedagógica, científica, cultural, administrativa, financeira, patrimonial e disciplinar face ao Estado
· Art.10º/2, Estatutos da Universidade de Lisboa – estabelece apenas “autonomia”, sem mais especificações
· Art.1º/2, Estatutos da FDUL – refere autonomia cultural, científica, pedagógica, administrativa e financeira.
Discricionariedade – breve exposição conceptual
A autonomia privada, dos particulares, caracteriza-se por decorrer de um princípio geral de liberdade, consubstanciado por uma permissão normativa genérica atribuída aos particulares.
Assim, mais uma vez recorrendo a Bernardo Ayala, podemos fixar o conceito de autonomia pública como o espaço de livre criação de efeitos jurídicos que resulta de uma norma habilitadora e conformadora da titularidade e exercício do respetivo poder.
Esta reserva de administração trata-se de uma “questão de mérito”, não de uma “questão de legalidade”. Como sabemos o sistema de controlo judicial português (como o francês, o alemão, o italiano,…) baseia-se num controlo da legalidade dos atos e não do mérito ou conveniência destes, assim, os atos praticados no âmbito desta reserva de administração - atos discricionários – são, por natureza, insuscetíveis de controlo judicial, pois que não se põe quanto a eles a questão sobre a sua validade.
1. Então tudo o que o legislador deixa por regular pode ser considerado como margem de livre decisão administrativa, detendo esta poderes discricionários nesse “espaço”?
2. Qual a fronteira entre os dois tipos de atos que referimos, os vinculados e os discricionários (dado que são radicalmente diferentes nas suas consequências)?
Correção de um exame – ato discricionário?
Após esta breve excursão concetual, penso estar em condições de tentar dar resposta à questão fundamental acima formulada.
Inegável será o facto de uma correção de um exame se tratar de um ato administrativo praticado por um agente da administração – o docente que corrige o exame (adiante, professor-corretor ou apenas corretor). Para tanto - considerando que não é do âmbito deste trabalho apresentar as questões controversas quanto à natureza do ato administrativo -, cinjo-me à invocação do art.148º do CPA, definindo ato administrativo como a decisão que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visa produzir efeitos externos numa situação individual e concreta.
Assumindo, como fiz, que a correção de um exame é um ato administrativo, resta saber se será discricionário. Como na exposição concetual acima se referiu, não é toda e qualquer ausência de predeterminação normativa que dá origem a uma margem de livre decisão ou a discricionariedade, é necessário, à luz do princípio da competência, que o órgão administrativo em causa esteja habilitado para tal atuação por uma norma habilitadora. Impõe-se então a pergunta: qual é a norma habilitadora da correção de um exame por parte de um professor.
A resposta, penso eu, não é linear, pois que no caso específico que ora nos ocupa, a norma habilitadora (repito: a meu ver) é a que atribui autonomia pedagógica aos estabelecimentos de ensino superior. Como referi, aquando da apresentação do regime jurídico da Faculdade, vimos que esta, por força do art.11º/1 do RJIES (e também por força da própria CRP – art76º/2) detém autonomia pedagógica. Deste modo, a lei atribui à Faculdade a possibilidade de escolher não entre duas ou mais opções que considerar melhores, mas entre milhentas opções. A meu ver, a norma (de fonte tanto legal quanto constitucional) que atribui autonomia pedagógica a entidades como a nossa faculdade permite que esta escolha de entre todo o tipo de métodos de avaliação possíveis, nomeadamente o método através do qual os alunos são avaliados mediante o seu resultado em exames escritos (sejam eles frequências ou exames – não interessando tal distinção para o efeito) que são corrigidos pelos professores.
Disse acima: “a lei atribui à Faculdade a possibilidade de escolher não entre duas ou mais opções que considerar melhores, mas entre milhentas opções” – menti. Ou por outra, não disse tudo. É evidente que esta possibilidade (esta margem de decisão livre, esta discricionariedade!) não é total, incondicional e absoluta, encontra limites. E que limites? Antes de mais os limites da própria lei.
À luz do princípio da legalidade (entenda-se juridicidade, como atualmente este princípio tem sido entendido), a Administração está subordinada desde aos princípios e normas de Direito Internacional até aos regulamentos por si elaborados. Ora, o já referido art.76ª/2 da CRP atribui também autonomia estatutária aos estabelecimentos de ensino superior, ou seja, a liberdade de as Universidades (e Faculdades – também não interessa agora voltar à distinção, aliás já acima feita) estabelecerem os seus próprios estatutos. Os Estatutos da FDUL, no art.3º/2, estabelecem o poder regulamentar dos órgãos da Faculdade. Por sua vez o art.14º dos mesmos estatutos definem como órgãos da Faculdade: o Conselho de Escola, o Diretor, o Conselho de Gestão, o Conselho Científico, o Conselho Pedagógico e ainda o Conselho Académico e o Conselho Consultivo. Finalmente, os estatutos definem no art.59º/1/c) ser competência do Conselho Pedagógico a aprovação do Regulamento de Avaliação da Faculdade (que, nos termos do arts.59º/2 e 29º/h) é depois assinado pelo Diretor da Faculdade). Conclui-se assim pela subordinação da Faculdade ao Regulamento de Avaliação, por força do princípio da legalidade (art.266º/2, CRP e 3º, CPA). Encontramos pois na própria lei, o primeiro limite a esta margem de decisão livre.
Este Regulamento de Avaliação estabelece nos seus arts. 27º e 28º a existência de critérios (“tópicos”) de avaliação a que está vinculado o corretor na sua atuação administrativa de correção dos exames. Assim, o professor-corretor está obrigado a respeitar os critérios de avaliação definidos pelo Professor Regente. Encontramos aqui um limite bastante claro à atividade do agente da administração.
Para além de limites claro como estes, temos outros limites, também resultantes da própria lei: os princípios limitadores da atividade administrativa. Desde logo o princípio da prossecução do interesse público (266º/1, CRP e 4º, CPA), mas a par deste há muitos outros, com especial relevância para os princípios da boa administração, igualdade, imparcialidade, boa fé e justiça e razoabilidade.
De forma a que este trabalho não se tornasse apenas teórico e a poder dar uma visão concreta e realista relativamente a como estes princípios poderiam limitar o ato administrativo em causa (a correção de um exame), procurei apresentar exemplos práticos em que estes princípios pudessem estar a ser violados.
- Princípio da boa administração – seria violador deste princípio (para além de
que do próprio Regulamento de Avaliação) a correção que apenas fosse entregue aos
alunos dois meses após a realização do exame, por não ser uma atuação
suficientemente célere.
- Princípio da igualdade – seria violador deste princípio se o corretor fosse
mais exigente com o João porque ele é judeu.
- Princípio da imparcialidade – permitir à Bruna não responder a uma das
perguntas porque ela é filha de um grande amigo do Professor
- Princípio boa
fé – seria atentar contra este princípio o professor que focasse a maior parte
das suas aulas numa matéria x e que referisse apenas de passagem a matéria y e
depois fizesse um exame apenas sobre a matéria y - dado ter criado uma situação
de confiança nos alunos de que essa matéria não seria avaliada ou pelo menos não
naquela extensão tendo depois frustrado as legítimas expectativas destes
- Princípio da
justiça e razoabilidade – seria atentatório contra este princípio um corretor
de um exame de Direito Constitucional que não contabilizasse nenhum artigo
apresentado pelo aluno pelo facto de este citar a fonte (Constituição da
República Portuguesa) apenas como C.R.P. (sem que nada explicitasse quanto ao seu
significado).
Por fim, considero ser relevante mencionar a limitação decorrente do dever de fundamentação.
Como já se referiu, a diferença fundamental entre os atos vinculados e os discricionários seria a de que estes últimos serem insuscetíveis de controlo judicial. Ora, se o dever de fundamentação já tem uma enorme relevância quanto a atos vinculados, maior terá quanto a atos discricionários, dada a sua natureza de insuscetibilidade de impugnação por parte dos particulares. Assim, penso que neste caso de um ato administrativo de correção de um exame o dever de fundamentação ganha uma especial relevância, estando o corretor vinculado a um dever de fundamentar a nota dada. Contornos práticos: este dever de fundamentação deverá passar pelas seguintes obrigações a cargo do corretor:
- colocar a cotação de cada pergunta no enunciado
- na entrega da correção indicar expressamente qual a classificação obtida pelo aluno
- na entrega da correção dar orientações claras sobre se as respostas dadas estão certas, erradas, incompletas,… podendo aqui (como aliás acontece na prática) recorrer aos mais diversos sinais gráficos – riscos, cruzes, “certos” – ou então escrevendo (como também muitas vezes ocorre) expressões mais extensas – “falta o pressuposto x”, “insuficiente a argumentação” ou outras do género.
- fundamentar a nota dada a pedido do aluno – embora assim o preveja o próprio Regulamento de Avaliação (art.29º).
Conclusão
Conclui-se respondendo
à pergunta que se formula no título: será a correção de um exame um ato
administrativo discricionário? A meu ver sim, será um exemplo em que a lei
(neste caso o art.76º/2, CRP e o art.11º/1, RJIES) atribui autonomia pública à
Administração (autonomia pública administrativa). Assim, penso que a correção
de um exame no âmbito da nossa faculdade corresponde ao exercício de um poder
discricionário por parte do professor-corretor.
No entanto,
como também procurei deixar claro, este exercício de um poder discricionário
por parte do corretor, está enormemente limitado. Normalmente estaria limitado
pela competência que lhe atribui a norma habilitadora, à luz do princípio da
competência, pesembora neste caso a norma habilitadora seja bastante permissiva.
Depois o bloco de legalidade, à luz do princípio da legalidade, é todo ele
chamado a limitar esta atividade administrativa, desde os princípios e normas decorrentes
do Direito Internacional ou Europeu até, como vimos, os regulamentos aprovados
pelos próprios órgãos da Faculdade, como o Regulamento de Avaliação (de que
decorre a vinculação aos critérios/tópicos de correção). Por fim, mais uma vez
à luz do princípio da legalidade, também os princípios da boa administração,
igualdade, imparcialidade, boa fé e justiça e razoabilidade são vetores
fundamentais que o sistema apresenta para orientar e limitar esta margem de decisão
(não assim tão) livre.
Por fim, o
dever de fundamentação aparece com especial relevância tendo em conta a natureza
discricionária do ato, que o torna insuscetível de controlo judicial.
Por tudo isto, chego à conclusão de que a correção de um exame é – sim – um ato administrativo discricionário, embora em larga medida limitado pelo Direito, podendo ser alvo de controlo judicial relativamente a tudo o que não estiver conforme com este e estando livre deste controlo em tudo o que se tratar de “questões de mérito” – por natureza insuscetíveis deste tipo de controlo.
Posso agora, com Freitas do Amaral, afirmar sobre a discricionariedade: não é poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico, delimitado pela lei.
Bibliografia
[1] FREITAS
DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo, Volume I, (4ª
edição), 2020, Almedina.
[2] PEREIRA
DA SILVA, Vasco. Direito Constitucional e Administrativo Sem Fronteiras,
2019, Almedina.
[3] AYALA,
Bernardo Diniz de. O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre
decisão Administrativa, 1995, Lex.
[4] QUEIRÓ,
Afonso. O Poder Discricionário da Administração, 1948, Coimbra Editora
Limitada.
[5] RJIES (https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/09/RJIES-2007.pdf)
[6] Estatutos
da Universidade de Lisboa (https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2019/07/Estatutos-ULisboa_10.05.2019.pdf)
[7] Estatutos
da Faculdade de Direito de Lisboa (https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2020/04/Novos-Estatutos-FDUL.pdf)
[8] Regulamento
de Avaliação FDUL (https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2021/10/Regulamento-de-avaliacao-alterado-art.-7.o-29.09.2021.pdf)
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