A contratualização administrativa ao serviço da adequação procedimental: o acordo endoprocedimental

 

1.        A contratualização administrativa e o princípio da adequação procedimental

 

Em Portugal, como noutros países de matriz jurídico continental, a utilização de contratos de direito administrativo foi inicialmente admitida para a satisfação de necessidades de gestão: execução de obras, aquisição de bens e serviços e administração do domínio público. 


Nesse contexto, a contratualização, que consubstancia a privatização das práticas da Administração pública, na medida em que as tradicionais relações unilaterais de autoridade – associadas à configuração hierárquica da atividade administrativa – dão lugar a relações de natureza contratual, pode ser definida como um conjunto de instrumentos de gestão usados no interior do sector público para definir obrigações recíprocas e expectativas entre os contraentes, tendo em vista obter os resultados consensualizados entre estes. VASCO PEREIRA DA SILVA (ob. cit.), por exemplo, ilustra a contratualização como expressão de uma tendência geral a contrariar o que denomina por “actocentrismo” (forma habitual de expressão unilateral da vontade administrativa através do ato administrativo).


O artigo 278.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) prevê, precisamente, que “na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os contraentes públicos podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer”. Os contratos administrativos são entendidos como todos os contratos que à luz do direito administrativo criem, modifiquem ou extingam relações jurídico-administrativas. Os contratos públicos são celebrados pela Administração Pública, quer sejam regulados pelo direito administrativo, quer pelo direito privado, que a lei submeta a um especial procedimento de formação.


O artigo 56º do CPA, por sua vez, consagra o princípio da adequação procedimental. SOFIA DAVID, por exemplo, sustenta que através deste preceito “determina-se a possibilidade de o órgão responsável pela direção do procedimento poder estruturá-lo em função do fim que se visa atingir com o mesmo. Inexistindo normas jurídicas injuntivas, concede-se ao responsável pela direção do procedimento um poder discricionário para o adequar ao fim pretendido com a decisão final, atendendo à situação concreta”.


         Os acordos endoprocedimentais previstos no artigo 57.º do CPA são, assim, expressão do já indicado princípio da adequação procedimental. A celebração destes acordos verificava-se já na praxis da atividade administrativa portuguesa, muito antes da sua consagração no CPA, sendo que a doutrina, com tolerância jurisprudencial, indicava os artigos 179.º, n.º 1, e 198.º do anterior CPA como fundamento para a celebração de “acordos substitutivos do procedimento unilateral” (SOFIA DAVID, ob. cit.).


       Detalhemos, ainda que de forma breve, a configuração normativa destes acordos endoprocedimentais e de que forma são expressão desta confluência entre contratualização administrativa e princípio da adequação procedimental.


2.        O acordo endoprocedimental 

 

No âmbito de um procedimento administrativo, ou seja, da sequência de atos e formalidades que expressam a vontade da Administração (n.º 1 do artigo 1.º do Código do Procedimento Administrativo), podem ser celebrados acordos entre esta e os interessados, no quadro da discricionariedade, e tendo em vista a articulação e aproximação da Administração e dos interessados na definição dos termos do procedimento ou da decisão administrativa a adotar (cfr. artigo 267.º da Constituição da República Portuguesa). Trata-se de acordos celebrados no âmbito de um procedimento, daí serem denominados como acordos endoprocedimentais, no artigo 57.º do CPA. 


A lei portuguesa aponta duas modalidades distintas de acordos endoprocedimentais. Por um lado, os acordos pelos quais o órgão competente para a decisão final e os interessados acordam os termos do procedimento e das respetivas formalidades, ou seja, que definam a prática ou a dispensa de certos atos num procedimento administrativo (n.ºs 1 e 2 do artigo 57.º do CPA). Por outro, a lei permite ainda que o órgão competente para a decisão administrativa e os particulares interessados acordem o próprio conteúdo (discricionário) da decisão final a proferir num determinado procedimento administrativo (n.º 3 do artigo 57.º do CPA). 


Em qualquer caso, os acordos endoprocedimentais, enquanto modalidade de contratualização administrativa, apenas são admitidos no exercício de poderes discricionários, em que a Administração tem, com efeito, um poder de escolha quanto às decisões a adotar. 


         A natureza jurídica dos acordos endoprocedimentais é, por sua vez, objeto de querela doutrinária. Por um lado, VASCO PEREIRA DA SILVA defende que estes acordos consubstanciam uma fase consensual integrada nos próprios atos administrativos. Portanto da sua perspetiva o ato administrativo não perde protagonismo, apesar da decisão que dele advém poder ser mediada. Nas palavras do professor, “a maioria da doutrina parece inclinar-se para continuar a qualificar como actos administrativos essas atuações unilaterais (...) isto porque a “fonte de validade” ( e de eficácia) de tais decisões não é o consenso das partes, mas a manifestação de vontade unilateral da Administração, independentemente de se saber se as autoridades administrativas e os particulares se puseram ou não previamente de acordo acerca do seu conteúdo”. Por outro lado, SÉRVULO CORREIA classifica os acordos endoprocedimentais como verdadeiros contratos celebrados entre a Administração e os administrados no decorrer do procedimento. Para este Autor, estes acordos seriam uma modalidade da categoria de contratos administrativos denominada, no CCP, contratos sobre o exercício de poderes públicos – 336º e 337º ambos do CCP. Segundo SÉRVULO CORREIA, o próprio artigo 1º, n.º 6, al. b), do CCP, qualifica os contratos endoprocedimentais de contratos administrativos.


    Inclinamo-nos para acompanhar este segundo entendimento, compreendendo que a conformação do conteúdo do ato administrativo pela negociação dos seus termos entre a Administração e os interessados é uma decisão bilateral embora a sua consagração na ordem jurídica seja feita através de ato administrativo.  Portanto, a Administração fica obrigada à prática do ato devido, segundo o princípio pacta sunt servanda, no caso do acordo endoprocedimental, assegurando a “adequação procedimental”.


3.        Síntese conclusiva 

 

A expansão da contratualização no âmbito da atividade administrativa, nas suas múltiplas modalidades, assegura várias vantagens, a partir da genérica paridade de relacionamento com os particulares, com a consequente i) maior conformidade com o estatuto constitucional do administrado; ii) maior legitimação da atividade da Administração; iii) diminuição da litigiosidade; iv) flexibilização do procedimento; v) aplicação da melhor solução ao caso concreto; vi) eficiência do procedimento; vii) maior igualdade procedimental; viii) um melhor exercício do contraditório e ix) maior ponderação decisória.


Os acordos endoprocedimentais são expressão dessa tendência contratualizante do Direito Administrativo e abarcam, precisamente, essas vantagens, desta feita na configuração e densificação da adequação procedimental, mediante acordo entre a Administração e o interessado (nos termos do artigo 57.º e ex vi do artigo 56.º, ambos do CPA).


         Na nossa opinião, estes acordos permitem captar, de forma equilibrada e virtuosa na conciliação dos interesses públicos e privados em presença no devir administrativo, a interdependente relação entre contratualização administrativa e o princípio da adequação procedimental.

 

 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:


- David, Sofia, “O princípio da adequação procedimental: os acordos endoprocedimentais e a administração eletrónica no novo CPA”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 116 (Mar.-Abr. 2016), pp. 3-18.

- Estorninho, Maria João, A fuga para o direito privado, Colecção Teses, Livraria Almedina, 1996.

- Moreira, Vital & Marques, Maria Manuel L.; "Desintervenção do Estado, privatização e regulação de serviços públicos"; Economia & Perspectiva, Vol II, nº 3/ 4, 1998, pp. 133 a 158.

- Pereira da Silva, Vasco, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, 2021 (reimpr.).

- Sérvulo CorreiaJosé, Noções de Direito Administrativo, Volume 1, Almedina, 2021.

 


Catarina Santos

Sub-turma 14, Turma B

nº 67638

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