Resolução de um caso sobre discricionariedade

Discricionariedade | Princípios gerais da atividade administrativa 

Alícia Fialho Madeira, nº67924, subturma 14

Exercício Prático

Na sequência de inspeção realizada por Abel, inspetor da ASAE, ao conhecido estabelecimento de fabrico e comércio de chocolates “Os Chocolatitos”, verificou-se que os chocolates de leite estavam a ser vendidos sem que do seu rótulo constasse referência ao teor de matéria seca total de cacau. 

Considerando que a inclusão da mencionada referência é uma exigência legal, impondo a lei a utilização da expressão «cacau:…% mínimo», o inspetor-geral da ASAE, depois de tramitado o devido procedimento administrativo, aplicou a coima máxima de €44.890 e as seguintes sanções acessórias: privação do direito de participar em feiras e mercados e privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, tendo em consideração a seguinte norma legal: 

«Artigo 24.º
Contraordenações

1 - As infrações ao disposto no presente decreto-lei constituem contraordenações, nos termos do presente artigo. 

2 - Constitui contraordenação punível com coima, cujo montante mínimo é de (euros) 100 e máximo é de (euros) 3740, no caso de o agente ser pessoa singular, e cujo montante mínimo é de (euros) 250 e máximo é de (euros) 44 890, caso o agente seja pessoa coletiva: 

a) O incumprimento das menções obrigatórias no rótulo dos produtos de cacau. 

b) (…) 

3- Consoante a gravidade da contraordenação e a culpa do agente, podem ser aplicadas, simultaneamente com a coima, as seguintes sanções acessórias: 

a) Perda de objetos pertencentes ao agente; 
b) Suspensão da comercialização do produto; 
c) Privação do direito de participar em feiras e mercados; 
d) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos.»

O proprietário da loja, Bento, encontra-se profundamente indignado com a decisão administrativa, na medida em que, para além de a ter como excessiva, afirma ter confiado no Aviso n.º 3/2019, de 4 de outubro, emitido pelo inspetor-geral da ASAE, no qual era definido um prazo de seis meses para a correção dos rótulos. 

A verdade é que Bento chegou a invocar o referido Aviso em audiência prévia, mas, na fundamentação da decisão, o inspetor-geral da ASAE afirma que o Aviso n.º 3/2019 tratou-se de um lapso de José, anterior titular do cargo de inspetor-geral da ASAE, na medida em que a lei é clara quanto às exigências em matéria de rotulagem na venda de chocolates de leite e, naturalmente, a lei é insuscetível de ser afastada por atos jurídicos praticados por órgãos da Administração Pública. 

Bento teve ainda conhecimento, através de Carlos, amigo de longa data de Bento e subinspetor-geral da ASAE, de uma troca de e-mails entre o inspetor-geral da ASAE e Abel. Num desses e-mails o inspetor-geral expressou-se da seguinte forma: «Atenção à situação d’Os Chocolatitos. Vê lá o que se pode fazer: o concurso para a venda de chocolate na feira de Natal do Parque Eduardo VII está aí à porta e a minha querida Daniela quer vender o máximo possível na sua banca». 

Bento afirma ainda ter lido recentemente no “Correio da Matina” que o Estado tem de respeitar o princípio da boa administração e os direitos dos cidadãos, mas, pelos vistos, em matéria de chocolates «o Estado pode fazer tudo». 
Quid iuris?

Resolução:

Primeiramente, há que notar que a ASAE é, segundo o nº1 do art.º. 1º do DL nº 194/2012 de 23 de agosto, um serviço da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa. Além disso, atendendo ao art.º. 2º, nº1 e nº2, al. A), i) do mesmo diploma, concluímos que a ASAE dispõe de competência para fiscalizar o estabelecimento de fabrico e comércio “Os Chocolatitos”. 

Podemos considerar, à partida, a não-ação da empresa “Os Chocolatitos” contrária a lei, ao omitir, no seu rótulo, as informações obrigatórias estipuladas no art.º. 24º. O artigo 24º surge como fundamento da atuação da Administração Pública, como exige o princípio da legalidade, presente no art.º. 266º, nº2 CRP e 3º CPA. Não obstante a vinculação da AP à lei, entendemos que o artigo também oferece poder de discricionariedade à atuação da ASAE. Assim, no mesmo artigo, existem poderes vinculados, isto é, mecânicos e que não oferecem margem de manobra à AP dentro da lei, e discricionários, ficando ao critério do titular a escolha concreta mais adequada ao caso. Os atos administrativos, como entende o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral têm elementos tanto vinculados como discricionários. Entendemos que a ASAE está vinculada pois, face ao incumprimento do estipulado no art.º. 24º deve esta agir de modo a sancionar o infrator, mas tem discricionariedade da medida da aplicabilidade dessa sanção, ao dispor de montantes mínimos e máximos, bem como sanções acessórias consoante a gravidade da contraordenação. 

Este “espaço de manobra” dentro da lei advém da impraticabilidade de regular ao detalhe toda e qualquer ação da AP, isto é, é inexigível que o legislador consiga prever todas as situações passíveis de surgir, sendo necessário uma adequação ao caso concreto. Assim, apesar de estar sempre vinculada à lei e aos princípios que traçam as linhas de atuação administrativa, pelo que a discricionariedade continua a ser jurídica no âmbito da definição normativa da conduta da AP, pode, e deve, o órgão adequar a sua atuação ao caso concreto.

Parece-nos imperativo mencionar que apesar de a o inspetor da ASAE ter como pressuposto da sua atuação a lei, os princípios orientadores da administração não foram, a nosso ver, observados na totalidade. Segundo o artigo 266º, nº2 CRP os agentes administrativos estão subordinados à CRP, à lei e ainda aos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé, pelo que analisaremos cada um destes princípios infra. 

Primeiramente, cabe indicar que a justiça é um conceito difícil de definir e tem vindo a ser moldado pelos pensadores de Direito desde o início da História. Encontramos este princípio positivado no art.º. 8º CPA. Hoje é entendido como a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido em função dos seus direitos. Debruça-se tanto pelo plano coletivo, de respeito pelos direitos, como no individual, desenvolvendo-se em subprincípios como a boa-fé, a igualdade e a proporcionalidade, surgindo como uma ultima ratio de vinculação. Os subprincípios serão analisados infra. 

Ora, o princípio da igualdade encontra-se positivado no artigo 13º da CRP e é entendido como a proibição da discriminação arbitrária e diferenciação, procurando estabelecer uma igualdade através da lei e perante a lei. No caso concreto nada nos indica que este princípio não tenha sido observado. 
Já o princípio da proporcionalidade surge como um dos principais alicerces do Estado de Direito, procurando que a prossecução do interesse público não provoque sacrifícios superiores ao estritamente necessário. Encontramos a positivação deste princípio no artigo 7º do CPA. Assim, a limitação dos direitos subjetivos e interesses dos privados por atos do poder público deve ser adequada e necessária aos fins concretos que estão a ser prosseguidos. Este princípio está assente em três critérios, a adequação (a medida deve ser adequada ao fim que prossegue), a necessidade (a medida deve ser aquela que, dentro das medidas possíveis à AP, lese em menor escala os direitos e interesses dos particulares) e o equilíbrio, ou proporcionalidade stricto sensu (os benefícios que se procuram alcançar são proporcionais ao sacrifício imposto ao particular). 

Não nos parece que haja um cumprimento, por parte de Abel, do princípio da proporcionalidade. Consideramos que há adequação da medida face ao incumprimento, sendo a coima uma medida adequada pois, a atuação da ASAE foi estipulada pelo art.º. 24º.. No entanto, não nos parece necessário aplicar a coima mais agravada possível à pessoa coletiva, bem como sanções acessórias. Apesar de haver, efetivamente, um incumprimento da lei, o caso não nos informa se há, ou não, incumprimentos anteriores pelo que nos parece excessivo uma sanção tão elevada para uma omissão de um dos requisitos de rotulagem do produto (além disso, estava a ser incumprida apenas uma das alíneas do nº1 do art.º. 24º, não havendo, cumulativamente, incumprimento de vários aspetos legais). De notar, ainda, que esta omissão por parte de “Os Chocolatitos” não está a lesar, em ampla escala, os direitos dos seus consumidores, que, apesar de disporem de direito à informação, art.º. 60º CRP, também dispõem de uma escolha ampla no mercado, pelo que, quem compra o bem sem percentual de teor de matéria seca total de cacau, consente não o saber face aos demais produtos que, em princípio, teriam esse indicativo, como dispõe a lei. Finalmente, o critério da proporcionalidade stricto sensu também não nos parece observado porque, pelas razões referidas supra, não nos parece que haja uma adequação entre o sacrifício imposto ao particular e ao fim que a AP prossegue. 

O princípio da boa-fé, art.º. 10º CPA. O princípio da boa-fé surge como forma de proteger os valores fundamentais do Direito, criando um clima de confiança e estabilidade. Estrutura-se, assim, por dois princípios, o princípio da tutela da confiança e o princípio da materialidade subjacente. O princípio da tutela da confiança está expresso, por exemplo, nos limites de revogação do 167º CPA. A AP não pode, injustificadamente, mudar o seu método de atuação ou criar uma situação de confiança e quebrá-la, que é o que acontece neste caso devido à confiança de Bento no Aviso nº3/2019, de 4 de outubro, emitido pela ASAE. No caso concreto, há uma situação de confiança criada pela ASAE, ao emitir o referido aviso, sendo plausível a crença de Bento que teria seis meses para a correção dos rótulos, pelo que é sempre expectável que haja uma concordância da atuação da AP e dos avisos emitidos pela mesma. Há ainda, uma verdade material, pelo que, no nosso entender, este aviso emitido pela ASAE constitui uma autovinculação da AP, ao permitir que os particulares tenham um período de 6 meses para corrigir os rótulos e apenas após esse intervalo a AP sanciona os infratores. Face a ambos estes critérios é legítimo que haja uma relação de confiança entre Bento e a AP, que a ASAE quebra ao não cumprir com o aviso nº3/2019, independentemente de ser, ou não, um lapso de José. 

Surge, no âmbito do lapso de José, a teoria do precedente administrativo, que se traduz na autovinculação da Administração Pública face a um dever de coerência. Apesar de, por norma, ser exigível um conjunto de decisões reiteradas da uma mesma entidade, a verdade é que um único precedente administrativo pode ter força para, por si só, autovincular a AP, mas apenas quanto aos seus próprios precedentes. O principal efeito da adoção da teoria dos precedentes é o tratamento uniforme de casos idênticos pela AP. Pode parecer, ab initio, que esta autovinculação da ASAE é contrária à lei, que, por si só, não estabelece um período de 6 meses, no entanto, a discricionariedade da AP também se traduz em quando pode praticar o ato, segundo o que o órgão entender. 

Entendemos que, no caso concreto, existe uma autovinculação da ASAE por precedente administrativo porque o aviso nº3/2019 criou em Bento uma verdadeira relação de confiança que, atendendo à boa-fé, a AP não deve quebrar. Além disso, nada obsta que a AP altere o seu modus operandi e os seus critérios de atuação, seguindo o 152º, nº1, al. D) CPA, no entanto, esta alteração deve ser fundamentada. O facto de ser um “lapso” do antigo titular do cargo de inspetor-geral da ASAE não obsta o facto de haver uma relação de confiança criada bem como uma necessidade de coerência por parte da AP, vinculada ao princípio da segurança jurídica, não nos aparenta como fundamentação para alterar a atuação da AP. No nosso entender, seria fundamento da alteração da atuação da AP a prossecução do interesse público que é, intrinsecamente, variável pois constituem necessidades coletivas que os privados não conseguem satisfazer. Seria fundamento devido ao princípio da boa administração, presente no art.º. 5º do CPA, que estipula que a AP deve ser eficiente e adequar a sua celeridade mantendo-se em proximidade com os particulares, desburocratizando-se, devendo as decisões ser tomadas da melhor forma.  Assim, devido ao princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos os atos que violem as autovinculações da AP são ilegais. 

Face ao exposto supra, e à luz do artigo 163º, nº1, CPA, consideramos a coima e sanções aplicadas à empresa “Os Chocolatitos” são atos ilegais por violarem as autovinculações da própria ASAE, não se aplicando o regime geral da anulabilidade devido a isso, ainda que tenha havido violação do princípio da proporcionalidade, da boa-fé e as autovinculações da própria ASAE. 
Finalmente, há que mencionar que, por parte de Abel, existe uma violação do princípio da imparcialidade, art.º. 9º CPA. Ser imparcial é sinónimo de manter uma posição super partes e não tomar partido. É revelado que Bento tinha interesse que Daniela vendesse o máximo possível de chocolates na feira, pelo que, ao sancionar “Os Chocolatitos” haveria menos concorrência para a banca do seu interesse, e Daniela ia, provavelmente, aumentar as suas vendas. Assim, a decisão não foi tomada com base no interesse público e critérios objetivos, mas sim com base em interesses pessoais e com uma distorção dos critérios legais. O princípio da imparcialidade surgiria, neste âmbito, na sua vertente negativa, art.º. 69º, nº1, al. B) CPA, pois, apesar de o caso não nos dar a informação quanto ao foro da relação de Abel e Daniela, com a expressão “minha querida” podemos supor a relação se enquadra no artigo referido. Face a isto, Abel deveria ter cumprido com o procedimento do artigo 70º do CPA, devendo ser substituído segundo o nº2 do mesmo artigo. Atendendo ao art.º. 161º, nº2, al. E), CPA, o ato administrativo é nulo por desvio de poder para fins de interesse privado. 

É latente, no caso concreto, o concurso de formas de invalidade no ato administrativo da ASAE. O concurso dá-se entre a anulabilidade decorrente da violação dos princípios positivados no art.º. 266º, nº2 CRP e a nulidade decorrente do desvio de poder para fins de interesse privado, art.º. 161º, nº2, al. E) CPA. Ora, seguindo a posição Doutor Diogo Freitas do Amaral, prevalece a sanção mais forte, no caso, a nulidade. Assim, podemos concluir que o ato praticado pela ASAE é nulo por força do 161º, nº2, al. E) CPA. 



Bibliografia:
Amaral, D. (2022). Curso de direito administrativo, volume II. Almedina.

REBELO DE SOUSA, M. / SALGADO DE MATOS, A «Direito
Administrativo Geral», D. Quixote, Lisboa - tomo I, «Introdução e Princípios
Fundamentais», 3.ª edição, Dom Quixote, 2008. 

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