A ilegalidade do ato administrativo

 Ilegalidade do ato administrativo.

 

            Primeiramente, um ato administrativo que viola a lei é um ato administrativo ilegal; Hoje em dia, a ilegalidade continua a ser a mais importante fonte de invalidade (valor jurídico negativo que afeta o ato administrativo em virtude da sua inaptidão intrínseca para a produção dos efeitos jurídicos que devia produzir) dos atos administrativos. 

            Seguidamente, ao classificar um ato administrativo contrário à lei como ilegal, é necessário ter em conta que a palavra lei está aqui a ser usada no seu sentido amplo. Assim, é necessário ter em conta todo o bloco legal (expressão de Hauriou) que serve para determinar a legalidade ou ilegalidade do ato administrativo. Ou seja, a Constituição, a lei ordinária, os contratos administrativos nas suas clausulas normativas e atos administrativos constitutivos de direitos com força de “caso decidido”. 

 

Os vícios do ato administrativo: aspetos gerais

 

A ilegalidade do ato administrativo pode assumir várias formas e estas formas são os vícios do ato administrativo. Desta forma, os vícios serão as formas específicas que a ilegalidade do ato administrativo pode revestir. 

A orientação de estabelecer um tipologia legal dos vícios do ato administrativo começou em França devido á necessidade prática de facilitar o recurso dos particulares aos tribunais administrativos. Em Portugal, a Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo no art.º 15/1 continha o preceito com a tipologia oficial dos vícios do ato administrativo. Daqui surge a tipologia dos vícios de administrativo: 

·      Usurpação do Poder; 

·      Incompetência;

·      Vicio de forma;

·      Violação da lei;

·      Desvio de poder;

 

Para além disso, é importante referir que da mesma maneira que uma inconstitucionalidade pode ser orgânica, formal e material, também as ilegalidades do ato administrativo podem ser de natureza orgânica, formal e material. Os vícios de usurpação de poder e incompetência correspondem a ilegalidade orgânicas; o vicio de forma corresponde a ilegalidade formal; e a violação da lei e o desvio de poder correspondem a ilegalidades materiais. 

 

Será obrigatório que os particulares que recorrem contenciosamente de qualquer ato administrativo tenham que especificar qual o vicio de que enferma o ato recorrido?

 

Certa doutrina entende que com a revisão da Constituição de 1976 deixou de ser obrigatório por lei que os particulares discriminassem em concreto qual do vicio em causa. Para esta tese é suficiente a invocação genérica da ilegalidade do ato e encontra apoio no art.º 268/4 CRP. 

Contudo, o Professor Freitas do Amaral, defende que este preceito constitucional não quis inconstitucionalizar todas as disposições da lei ordinária que, em sede de contencioso administrativo, exigem a especificação do vicio do ato recorrido. A função útil e necessária do art.º 268/4 é a garantia de recurso contencioso contra os atos administrativos arguidos de ilegalidade. Outro argumente defendido pelo Professor é que a exigência de especificação do vicio só poderia pôr em causa os direitos fundamentais, se o erro inicial na qualificação decerto vicio não pudesse ser corrigido mais tarde. Este cenário não se verifica porque a jurisprudência do STA sempre aceitou que o tribunal pudesse corrigir a qualificação jurídica dos vícios alegados pelas partes. Presentemente, segundo o art.º 78/2/g CPTA, é exigido que o autor de uma ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo exponha na petição os factos e razões de direito que fundamentam a ação. 

 

 

1.     Usurpação do poder: 

 

Este vicio consiste na prática por um órgão administrativo de um ato incluído nas atribuições do poder legislativo, do poder moderador e do poder judicial. Este vicio traduz-se na violação do principio da separação de poderes presente no art.º 2 e 111 da CRP. A autonomia deste vicio apresenta uma causa histórica ligada à origem do direito administrativo moderno. Este surge em França, no seguimento da revolução francesa, no momento em que se consagrou o principio de separação de poderes. Aqui estabeleceu-se que a administração estava proibida de se imiscuir nas questões judiciais, e assim, surge a autonomia do vicio da usurpação de poder. 

O professor Marcello Caetano definia este vicio como a pratica da administração de um ato incluído nas atribuições do poder judicial e não fazia qualquer referência à invasão do poder legislativo. Porém, segundo o Professor Freitas do Amaral, uma vez que se autonomiza um vicio para sublinhar a invasão de outro poder do estado por parte da administração, não faria sentido não autonomizar também a invasão do poder legislativo e a invasão do poder moderador. 

            Este principio reporta três modalidades: segundo professor Freitas do Amaral

·      Usurpação do poder legislativo;

Como exemplo teríamos a criação de um imposto por ato administrativo por parte do Governo ou órgão do poder local. A criação de impostos, segundo o art.º 165/1/i CRP, só pode ser feita pelo poder legislativo. 

 

·      Usurpação do poder moderador; 

Como exemplo seria a situação de o Primeiro-Ministro enviar um despacho a demitir um funcionário da Presidência da Republica ou a preencher uma vaga no conselho de estado. 

 

·      Usurpação do poder judicial; 

Como exemplo pode-se citar uma deliberação de uma Camara Municipal declare nulidade de um contrato civil. 

 

            Recentemente, a prática suscitou um novo aspeto da problemática deste vicio. 

Numa situação onde se apresente uma pessoa coletiva privada incumbida do exercício de poderes públicos, e cuja a sua estrutura apresente três órgãos independentes (assembleia geral, direção e conselho de justiça), e que estes não podem invadir as competências uns dos outros, pode acontecer que tenham ocorrido decisões praticadas pelo terceiro que eram de competência exclusiva do primeiro.

Esta ilegalidade corresponde a um vicio de usurpação do poder?

            Segundo o professor Freitas do Amaral, como se considera que o esquema de repartição de competências se baseia numa rígida separação de poderes, conclui-se que o ato em causa estava inquinado de uma usurpação de poderes, e por isso, ferido de nulidade.  

            Assim, a partir deste caso este vicio tem que ser pensado de forma mais ampla. A consequência desta mudança revê-se no art.º 162/2/b que considera nulos os atos praticados com falta de atribuições. O caso como o referido pode aí ser incluindo por analogia.

 

 

2.     Incompetência: 

 

A incompetência pode ser definida como um vicio que consiste na prática, por um órgão administrativo, de um ato incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão administrativo. Para se verificar este vicio é necessário que o órgão administrativo que praticou o ato invada a esfera própria de outro órgão administrativo, mas sem sair do âmbito do poder administrativo. 

Por um lado, segundo um primeiro critério, este vicio pode ser classificado como:  

·      Incompetência absoluta;

·      Incompetência relativa. 

Assim, a incompetência absoluta será aquela que se verifica quando um órgão administrativo pratica um ato fora das atribuições da pessoa coletiva ou do ministério a que pertence. Já a incompetência relativa verifica-se quando um órgão administrativo pratica um ato que está fora da sua competência, mas que pertence à competência de outro órgão da mesma pessoa coletiva. 

 

Por outro lado, e segundo um segundo critério, a incompetência pode ser classificada:

·      Em razão de matéria; 

·      Em razão de hierarquia; 

·      Em razão do lugar;

·      Em razão do tempo; 

Em primeiro lugar, existe incompetência em razão da matéria quando um órgão administrativo invade os poderes conferidos a outro órgão administrativo em função da natureza dos assuntos. Em segundo lugar, pode ocorrer incompetência em razão da hierarquia quando se invadem os poderes conferidos a outro órgão em função de grau hierárquico (subalterno invade a competência do seu superior ou vice versa). Em seguida, há incompetência em razão do lugar quando um órgão administrativo invade os poderes conferidos a outro órgão em função do território. Por fim, existe incompetência em razão do tempo quando um órgão administrativo exerce os seus poderes legais praticando um ato administrativo antes ou depois do momento em que se encontra legalmente habilitado para o fazer. 

 

 

3.     Vicio de forma: 

 

O vicio de forma é aquele que consiste na preterição de formalidades essenciais (vicio procedimental) ou na carência de forma legal (vicio de forma em sentido estrito). Este vicio comporta três modalidades distintas: 

·      Preterição de formalidades anteriores à pratica do ato;

·      Preterição de formalidades relativas à pratica do ato;

·      Carência de forma legal; 

Importante relembrar que existe a eventual preterição de formalidades posteriores à prática do ato administrativo. 

 

Porque é que nestes casos não existe produção de ilegalidade e apenas pode produzir a ineficácia do ato?

            A validade de um ato administrativo afere-se sempre pela conformidade desse ato com o ordenamento jurídico no momento em que ele é praticado – tempus regit actum. Portanto, no momento em que o ato administrativo é praticado ele pode ser inválido por estar em contradição com a lei. Contudo, se a preterição das formalidades ocorrer depois do ato ser praticado, o ato não fica inválido por causa do que se passou depois dele. Ou seja, não há repercussão para trás e o que se passa depois da prática do ato não o invalida. 

 

 

4.     Violação de lei: 

 

Este vicio consiste na discrepância entre o conteúdo e o objeto do ato e as normas jurídicas que lhes são aplicáveis. Este vicio vai comprometer uma ilegalidade material porque é a própria substância do ato administrativo que contraria a lei. Desta forma, não há correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a administração age. 

Continuando, este vicio produz-se normalmente quando a administração decida coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decida quando a lei a mande decidir algo. Contudo,  pode ocorrer um vicio de violação de lei no exercício de poderes discricionários. Isto é uma novidade na doutrina recente porque tradicionalmente pensava-se, que havendo poderes vinculados, o vicio característico era a violação da lei, e que, havendo poderes discricionários, o vicio característico era o de desvio de poder. O próprio art.º 19 da LOSTA fazia eco deste entendimento tradicional. Porém, mais tarde a doutrina reconhece que também no exercício de poderes discricionários pode ocorrer um vicio de violação de lei. 

 

Desta forma, coloca-se a questão de perceber em que circunstâncias pode ocorrer vicio de violação de lei no exercício de poderes discricionários? 

            É justificado quando são infringidos os princípios gerais que limitam e condicionam genericamente a discricionariedade administrativa, ou seja, os princípios constitucionais como o principio de imparcialidade, igualdade, justiça, proporcionalidade e boa fé. Desta forma, é possível que no exercício deste poder, a administração pratique um ato administrativo que, sem estar ferido de desvio de poder, ofenda algum dos princípios. Como ofende algum destes, há obrigatoriamente violação de lei. 

 

            O vicio de violação de lei comporta também várias modalidades: 

·      A falta de base legal – pratica de ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a pratica de ato desse tipo; 

·      Erro de direito cometido pela administração na interpretação, integração ou aplicação de normas jurídicas; 

·      Incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo; 

·      Incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo; 

·      Inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou direito, relativos ao conteúdo ou objeto do ato administrativo; 

·      Ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela administração no conteúdo do ato (condição, termo ou modo), se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios; 

·      Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconhecida a outro vicio. 

 

Esta ultima modalidade comprova que este vicio tem um caracter residual pois abrange todas as ilegalidades que não caibam especificamente nos outros vícios. 

 

 

5.     O desvio de poder

 

Como ultimo vicio neste elenco, o desvio de poder consiste no exercício de um poder discricionário por motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao conferir tal poder. Em termos históricos, França em 1840, graças ao labor da jurisprudência, o détournement de pouvoir juntou-se ao vicio de forma e à incompetência como fundamento do recurso contencioso fundado em ilegalidade. Em Portugal, este vicio foi expressamente reconhecido através do art.º 15 da LOSTA, muito embora antes já tivesse sido alvo de tratamento doutrinal. 

Concretizando, este vicio prossupõe uma discrepância entre o fim legal e o fim real, ou seja, o fim efetivamente prosseguido pelo órgão administrativo. Para além disso, para este vicio de verificar, não é relevante saber se o órgão administrativo se desviou do fim legal porque interpretou mal a lei (erro de direito) ou se intencionalmente quis de facto prosseguir a um fim contrário à lei (má fé). 

 

Assim, de forma a determinar este género de vicio, tem que se proceder a três operações: 

·      Primeiramente, apurar qual o fim visado pela lei ao conferir a certo órgão administrativo um determinado poder discricionário, ou seja, o fim legal; 

·      Seguidamente, averiguar qual o motivo principalmente determinante da prática do ato administrativo em causa, ou seja, o fim real; 

·      Por fim, determinar se este motivo principalmente determinante condiz ou não como aquele fim legalmente estabelecido: se existir compatibilidade, o ato é legal, e assim, válido. Se não ocorrer qualquer compatibilidade, o ato é ilegal e, consequentemente inválido, por desvio de poder. 

 

 

Em seguida, este vicio comporta duas modalidades: 

·      O desvio de poder para fins de interesse publico; 

·      O desvio de poder para fins de interesse privado; 

 

Desta forma, ocorrer desvio de poder para fins de interesse publico quando o órgão administrativo visa alcançar um fim de interesse publico, embora diverso daquilo que a lei impõe. Pelo contrário, existe desvio de poder para fins do interesse privado quando um órgão administrativo não prossegue fins de interesse publico, mas sim de interesse privado. Este cenário deriva de motivos como graus de parentesco, amizade, inimizade, corrupção, etc. 

A jurisprudência mais antiga, como no acórdão de 27.2.48 e 11.2.49, do Supremo Tribunal Administrativo exigia, para que o desvio de poder por motivo de interesse privado fosse anulado, que o órgão administrativo atua-se com dolo. Ou seja, teria que existir o propósito consciente e deliberado de prosseguir o fim ilegal, bastando um simples erro para a relevância anulatória do desvio de poder por motivo de interesse publico. Contrariamente, o Professor Freitas do Amaral considera esta orientação infeliz. No fundo, esta jurisprudência traduzia um sistema que dificultava a prova de modalidade mais grave do desvio de poder (sobreposição do interesse privado), ao mesmo tempo que facilitava a da modalidades menos grave. Assim, o professor aplaude o art.º 161/2/e que consagra a nulidade dos atos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado. 

 

 

A cumulação de vícios: 

            Um ato administrativo pode ser ilegal porque nele se verifica um vicio, mas este também pode ser ilegal porque nele concorrem dois ou mais vícios. Efetivamente, um ato administrativo pode estar ferido simultaneamente de várias ilegalidades pois os vícios são cumuláveis e, para além disso, pode acontecer que haja mais do que um vicio do mesmo tipo. 

            Porém, nem sempre foi esta a conceção aceite. Antigamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo considerava inadmissível que se arguisse simultaneamente violação de lei e desvio de poder. O raciocínio seria que um ato administrativo é vinculado ou discricionário. Se este fosse vinculado, pode ser arguido por violação de lei. Se este fosse discricionário, não pode ser arguido de violação de lei, portanto só pode ser arguido por desvio de poder. O que se sucede na prática é que não existem casos totalmente vinculados ou totalmente discricionários. O ato é em parte vinculado e discricionário, portanto pode arguir um mesmo ato de violação de lei e desvio de poder (desde que nos reportemos a aspetos diferentes do mesmo ato). 

            Concluindo, hoje a lei processual prevê que o tribunal, no âmbito das ações de impugnação de um ato administrativo, se pronuncie sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado e que identifique a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, de acordo com o art.º 95/3 CPTA. 

 

 

Conclusão: 

            Em suma, a ilegalidade de um ato administrativo afere-se pelo facto de um ato violar uma lei. Os enumerados vícios são diferentes tipologias das possíveis ilegalidades do ato administrativo. Em conclusão, é necessário relembrar que existem outras formas de invalidade do ato administrativo, mas que não desencadeiam automaticamente a ilegalidade do ato. Ou seja, existem atos que podem ser inválidos, portanto, nulos ou anuláveis, por razões que nada têm a ver com a sua ilegalidade.  

 

Margarida Shirley Silveira 

Subturma 14


Bibliografia: 

 

Amaral, D. (2022). Curso de direito administrativo, volume II. Almedina. 

Acórdão 27.2.48 do Supremo Tribunal Administrativo

 

Acórdão 11.2. 49 Supremo Tribunal Administrativo 

 

Marcelo, C. Manual I.

 

 

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Simulação (Grupo I): Advogados ACL - criação do salão de cabeleireiro "Paris em Linha"

Simulação Grupo 5 - Equipa de Advogadas “Criação da Empresa Municipal Linha Mais Próxima”

Simulação - Atribuição da tarefa de AIA a uma associação pública, integrante da Administração autónoma